segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Manoel Carlos Karam

Queria lembrar agora alguma de tuas geniais passagens
Mas me escapam como o sonho matutino se esvaindo
Queria estar ao lado de teu fogão a lenha, saboreando umas verdinhas
Estas sim, ficarão como homenagens eternas a cada gole
Quero dizer que os bons não esmorecem
Que continuam caminhando quando todos se perdem em lamúrias
Sim, este é exatamente o que és
Gostaria de recordar teus chistes, pronunciados genialmente
Dentro de tua contundente serenidade
Mas nesta hora, apenas me sinto mais vazio
Mas surpreendentemente calmo
Porque, como já disse, os bons têm vida longa
Não importa onde nem quando
Depois que todos nós também tivermos empreendido essa viagem
E estivermos esquecidos em raspas de pensamentos
Tu estarás, ainda, ensinando gerações e gerações por meio de teus escritos e memórias

>> Manoel Carlos Karam, escritor, jornalista, degustador de heinekens, andarilho de curitiba, mais corajoso que todos nós, resolveu empreender primeiro a viagem oculta, em 1º de dezembro de 2007. Abraço, amigo. Que venham os Taedos!

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Baratópolis 2

Depois que fomos assaltados várias vezes naquela casa, decidimos rapar da boca. E fomos, eu, Joca e Patrícia – e depois a Fábia - pra um muquifinho um pouco menor na rua Célia. Era casa de frente em uma ruazinha com várias casinhas iguais. Era legal porque tinha um boteco numa ponta, e o restaurante do Ô na outra esquina. A casa era do mesmo tipo: feita de areia, as portas eram tortas (não digo só as portas, mas os buracos das portas!), e o assoalho era igual ao da outra. Mas a casa parecia melhor. Só parecia. De vez em quando apareciam algumas baratas, mas nada anormal. Íamos tocando.

E foi aí que veio o horror! O horror! Eu tava voltando de viagem. A cidade estava molhada, parecia ter chovido muito. Cheguei na casa, ninguém. Mas algo estranho: muitas, mas muitas baratas mortas em vários cantos. Algumas ainda agonizavam movendo as perninhas. Jogados ao chão, como espólios de uma retirada desabalada das tropas em desespero, vários tubos de inseticida. Visão amedrontadora. Deixei minhas coisas e fui procurar o povo. O primeiro lugar da busca foi no bar dos tremoços. Nada. Em outros bares nas imediações. Ninguém. Na Marasmo, república próxima, lá estavam.

Era fim de tarde. Uma tempestade braba se avolumava. Nuvens pra lá de feias chegando. E a água desabou torrencialmente. Fábia e Patrícia estavam a sós, amedrontadas porque a casinha parecia não estar muito a fim de enfrentar a fúria elementar. A água desabando. Muita. Eis que surge uma, duas, algumas baratas. Aaaaaahhhhh! (imagine gritos de mulher nessa situação). Saem correndo. Pegam inseticida. Mandam ver. E chove mais ainda. E foi então que elas viram... Do forro do teto, e do assoalho, começaram a brotar centenas e centenas de baratas, elas berrando (as meninas, não as baratas), mandando ver nos inseticidas, baratas subindo pelas pernas, elas se borrifando com o veneno como se fosse repelente, a visão do inferno cascudo. É claro que a coisa podia ficar pior: acabou a luz. Daí elas desistiram. Saíram da casa sem olhar pra trás, mesmo embaixo do aguaceiro todo. O problema todo, descobriu-se depois, não era só da nossa querida casinha purulenta, mas de todo o quarteirão, que estava condenado, com sistema de esgoto totalmente acabado.

Enfim, esta foi mais uma aventura sensacional patrocinada pelo nosso baratóide preferido. Fui!

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Da série perguntas que ninguém responde

para já

pra parar de trabalhar
tem que trabalhar mais ainda
daí vem a questão
parar de trabalhar
ou parar de pensar
em parar de trabalhar

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Baratópolis 1

A Vanda acha um horror as histórias de república de Bauru. Principalmente a parte das baratas. Mas elas eram legais, davam uma identidade inconfundível às nossas moradas. Na república da Joaquim da Silva Marta, a casa era de fundo. Entrava-se por um corredor detonado para, lá atrás, encontrar a casinha, mais acabada ainda.

A ligação de água era clandestina, daí a gente nunca ter pago nada em todo o tempo que moramos lá. A casa era velha, parecia feita de areia: se você fosse cutucando a parede, com o dedo mesmo, conseguia fazer um furo. O assoalho, de madeira, era daquele tipo que cede ao peso dos passantes.

Embaixo do assoalho... Bem, a crise de moradia para estudantes em Bauru era grande. Ninguém queria alugar pra esses baderneiros maconheiros. E as baratas também eram hostilizadas nessa região conservadora do desertão paulista. Daí precisarem de abrigo, carinho, proteção e muito alimento quase de graça. Ali, embaixo das madeiras sob nossos pés, elas viviam em paz.

Nossos móveis eram feitos de caixas de madeira roubadas da feira. Quando o dono da geladeira foi embora, eu e o Joca Terron fomos atrás de outra. Conseguimos uma pechincha por uma gelas quase sem fundo – tava todo carcomido pela ferrugem, com a lã de vidro pendurada como uma língua obscena. É claro que ela não durou muito. Ao quebrar, virou armário, e passamos anos sem geladeira. Quando precisávamos tomar uma coca gelada no almoço, íamos à casona ao lado, e pedíamos gelo, sob desconfiados olhares da vizinha. Para a cerveja, bastava ir até a padoca da esquina.

Nos memoráveis churrascos de final de semana, enchíamos a máquina de lavar tanquinho do Paulo com gelo e tascávamos as cervejas lá, normalmente depois de uma noite inteira gelando no freezer do Laurão, que tinha um bar mais abaixo e fazia os melhores espetinhos de frango empanados que eu já comi. No Laurão eu pude me deliciar uma noite assistindo ao Coringão ser campeão brasileiro, pela primeira vez, em cima do São Paulo na final em 1990. O melhor, ao lado do Joca e do Beto, dois são-paulinos mais chatos do planeta, se bem que são-paulino chato é pleonasmo pra lá de vicioso. Bons tempos nessa decepção futebolística atual em que nós, corintianos, nos metemos. Deixa pra lá.

Numa outra vez, um cabeçudo qualquer, acho que o próprio Beto, derrubou e quebrou a pia do banheiro. Não nos fizemos de rogados: não a reinstalamos por questões sentimentais, imagine quebrar toda uma desarmonia natural que ia se instalando com tanto requinte naquele muquifo? Ficamos sem pia até nos mudarmos de lá. Escovar os dentes era no banho ou na pia da cozinha mesmo.

Isso tudo é para ilustrar como o terreno era propício a todos os tipos de vermes rastejantes, como nós e as baratas. Ah, elas eram bastante ativas. À noite, ouvíamos as bichinhas roerem papéis. Teve um ano em que eu trabalhei pro IBGE fazendo o censo. Uma vez fui entregar um lote de questionários para meu supervisor, e alguns deles estavam até furados. “Acho que tem rato na sua casa”, disse ele. Mal sabia.

Tínhamos dois gatos, um preto, o Tai, e um branco, o Chin. Eles sumiram, assim como a Laura Palmer, outra gata que tivemos. Na verdade, nós abandonamos a Lauritcha lá, e, quando voltamos para procurar, ela tinha sumido. Os gatos nos davam presentes. Quando você acordava, lá estava uma barata meio comida olhando pra você, em cima do seu peito. Ah, que tempo bom, que alegria, quanto alto astral!

Segue >>

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Hipocrisia, uma viagem sem volta

Agora é uma avalanche de gente querendo dar seus pitacos sobre liberação ou não das drogas ilícitas. Ah, o IBGE notou que as classes média e alta é que sustentam o tráfico! E a imprensa dá em manchetes garrafais. Ah, vá, não me diga?! (cara de incrédulo, com a mão segurando o queixo) E o gerente da segurança do Rio diz que é complicado dar tiro em Copacabana, daí ele prefere mandar bala só na perifa. Então tá.

Dentro de todas essas, eu tava tentando ver aquele debate oligofrênico da MTV, agora tocado pelo Lobão. Preferia o Cazé, e olhe lá. Sinceramente, o Lobão já deu. Primeiro que a gente não entende nada do que ele tá falando. E ele não consegue rolar o debate de forma organizada. Enfim, não que eu assista muito. TV e sociedade me dão um tédio tremendo. Prefiro ouvir um som, tocar violão, ler as aventuras magistrais de Jack Aubrey, o mestre dos mares, emprestadas encarecidamente pelo Miyashiro, ou coçar o saco.

Voltando à vaca fria, no debate em questão, um psiquiatra e um policial civil na ala dos que defendem o combate forte e militar às drogas. E uns outros no lado contrário. E o Lobão, que já foi preso por porte de uns baseados, levantando a bola pros a favor do combate cortarem, com aqueles lances pífios, tipo, “o cara que consome maconha se envenena muito mais que o cara que fuma cigarro”, coisa que saiu tempos atrás no Terra, na Folha e no diabo a quatro. Materinha de agência, tapa-buraco. (Em tempo: o título desse texto falava isso, mas o cientista em questão ressaltava que era por causa da falta de filtro nos baseados e em caso de fumar muito, mas muito mesmo.) É ridículo, sem importância, mas, pro grande público, o que vale é a primeira impressão, e pronto, estamos já pendendo vergonhosamente para um dos lados. E o cara se esbalda, nadando de braçada.

Argumentos tem dos dois lados. Vício em qualquer coisa realmente destrói e desagrega, ponto para eles. Mas o tráfico enriquece quem justamente posa de bonzinho; sustenta o comércio de armas e mata gente que não tem nada a ver com o peixe. Ponto para o outro lado. E por aí vai. Só que já estamos muito além disso.

Creio que, sim, com bate-papo e educação, é possível que eu, você e mais um monte de gente consiga deixar os filhos longe do vício (não digo do consumo, mas também creio que seja possível). Só que é utópico achar que as pessoas vão deixar de consumir drogas. Pense na gigantesca oferta. Pense que somos 6 bilhões de pessoas no planeta. Então, alguém aí acha realmente que um dia as drogas deixarão de ser utilizadas? Claro que não. E não é uma postura ideológica, mas matemática e física. É estatística. Está no campo das probabilidades e até do princípio da incerteza de Heisenberg. Querer dizer que bater, matar e arrebentar vai resolver a parada é o mesmo que a igreja católica querer que as pessoas parem de fazer sexo sem casamento ou façam só pra procriar, por exemplo. Fora da real, sem noção total.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

...tempo

Se a criação é algo grandioso, incompreensível, se tem uma lógica estranha, mas bela, é de se esperar – manda o raciocínio possível – que seus objetivos sejam também elevados, ou, pelo menos, se não houver objetivo nenhum, que seu desenvolvimento seja de eventualidades realmente fora de qualquer controle. Desse modo, nossa visão do um depois do dois, nossa visão quadro a quadro na janela, nos confortaria porque, por mais estranho, sacal, injusto ou sem nexo que seja o futuro, cremos que ele foi criado ali, naquele momento, que foi conseqüência de atos anteriores e que novos momentos virão e poderão ser escritos de outra forma, com algum sentido que nos satisfaça ou pelo acaso total. É o que nos move, a nossa esperança de cada dia.

Mas se tudo foi expelido pronto, em um milionésimo de segundo, temos, em primeiro lugar, como já disse antes, a questão da arbitrariedade e da predestinação. Não vou falar sobre isso. Vou falar sobre a gratuidade da coisa. Se tudo foi criado de supetão, pensamos, “puxa, as galáxias com sua beleza, as nebulosas, a força das estrelas, o movimento dos quasares, a força dos pulsares, o enigma dos buracos negros”. Tudo isso está de acordo com o que esperamos do espetáculo a que se propôs o big bang. E a hierarquia de forças - o eletromagnetismo, as forças nucleares forte e fraca, a gravidade - colocando tudo em seu lugar: universo, galáxias, sistemas, planetas, satélites e tudo o mais. E a vida? Sua complexidade, sua aparente insuperável lógica em se adaptar e dar respostas evolutivas, a auto-consciência. Também está dentro daquelas grandes expectativas, seja o tempo simultâneo ou cronológico. Tudo muito bonito, engrenado, incomensurável.

Só que daí pensamos: se o tempo foi criado de uma vez, com tudo isso já impresso na tira de filme, fotograma a fotograma, também foram criadas, em pleno big bang, coisas como Maluf, Hitler, Bush, Bin Laden, Sílvio Santos, rede Globo, ditaduras, funk carioca, revista Veja, jornalões, BBB, genocídios? No plano geral da obra, no instante do sopro primordial veio cada um desses lances já pronto? “É o Tchan” estava no projeto de universo já há 14 bilhões de anos? É muito desmoralizante. Sinceramente, se for assim, estou um tanto quanto decepcionado. Daí eu preferir que as cagadas sejam realmente feitas uma depois da outra. Pelo menos temos a ilusão de que somos nós que fazemos ou deixamos de fazer as coisas.

O que um mês de abstinência de álcool não faz a um sujeito...

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

....tempo...

Supondo que o exercício de raciocínio do tempo colocado anteriormente seja válido, quer dizer que, de uma só vez, em um instante, um vácuo de segundo, tudo se formou e também se configurou: o movimento da poeira estelar, sua aglomeração em nebulosas, depois em galáxias e estrelas, algumas se tornando supernovas, outras quasares, outras buracos negros. Até que parte da poeira se adensou em planetas, rochas, cometas e tudo o mais. E mais avante ainda, a vida floresceu na terra, evoluindo até chegar em nossa atual configuração. Mais ou menos 14 bilhões de anos pra chegar aqui. Isso se estivermos, como realmente estamos, vendo tudo passar quadro a quadro em nossa janela.

Para alguém hipoteticamente mais afastado, a visão é, na hora do big bang, da tira inteira do filme pronta. Tudo o que iria acontecer já estava lá. Todo esse movimento, cada grão de poeira cósmica se juntando, cada giro de planeta, cada agitação dos pseudópodes dos primeiros organismos unicelulares, cada passo dos organismos complexos, cada virada de pescoço dos animais superiores, cada simples piscar de olhos dos seres humanos.

Num momento, tudo existe. É a imagem de Brahma sentado sobre a flor de lótus que nasce do umbigo de Vishnu. No espaço de uma piscada, ao abrir os olhos, Brahma cria um novo universo. Ao fechar os olhos, o universo deixa de existir. Ao abrir novamente, um novo universo vem, e assim por diante. A criação e destruição contínuas em cada piscar de Brahma. No posto do nosso observador privilegiado, ele veria o espaço-tempo de uma só vez, todos os momentos, cada movimento, em um único instante.

O universo é imenso. Pode até ser finito (há uma grande discussão sobre se é ou não, dependendo de sua massa total), mas é tão grande que não faz diferença para nossa percepção. Além do que há ainda toda a elucubração sobre o que vem depois de suas fronteiras (outro bate-boca em andamento). Mas voltando ao universo perceptível, é algo fora de nossos parâmetros, toda magnitude desse período de bilhões de anos e também a extensão desses mesmos bilhões de anos-luz de espaço. Enfim, é tão incomensurável que alguns o creditam a deus e coisas do tipo. Deu pra sacar o que estou dizendo, né? Daí é que vem o enrosco.

Segue:...tempo

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Tempo...

Dizem os físicos que o tempo é uma coisa só. Que a sensação de passagem dele que temos, um segundo atrás do outro, é pura ilusão por incapacidade de compreensão do todo. Seria como imaginar uma tela, um buraco na parede em que se passa uma tira de filme. Estando próximos demais dessa janela, vemos um fotograma por vez passando por ali. Uma pessoa andando. Vemos o primeiro fotograma com ela saindo da inércia, o segundo e subseqüentes formando o movimento do primeiro passo, e todos os outros criando o deslocamento. Vemos um após o outro apenas. Não sabemos se no próximo a pessoa vai tropeçar e cair, se vai parar, qual direção vai tomar. Temos apenas a consciência do futuro exatamente no momento em que ele acontece. Acreditamos que o futuro vai sendo construído à medida que ele vai chegando. Cada novo fotograma que passa pela janela, cremos nós, não existia anteriormente, e teria sido criado do nada, ou, talvez, como conseqüência do movimento anterior.

Mas a física diz que, na verdade, o filme está completinho. Se nos afastarmos do quadro a que estávamos confinados, poderemos ver todos os fotogramas do filme, e não somente aquele que está passando naquela janela. Veremos todos os movimentos anteriores àquele e todos os posteriores. Tudo de uma só vez. Tempo total em um único momento. Ele existe assim, mas nós não podemos notá-lo. Pelo menos não ainda. Se é que vamos conseguir ter alguma outra noção além dessa, algum dia. Aqui entrariam questões filosóficas do livre arbítrio X predestinação, mas o caso agora não é esse.

A teoria diz que, no pentelhésimo de segundo do início do big bang, houve uma expansão gigantesca do espaço-tempo. Que elementos com o volume de um átomo se expandiram para tamanhos de galáxias. O tempo está nessa, indissociável que está do espaço. E o tempo teria se expandido totalmente, de lá até o fim dos tempos, de uma vez só. Quer dizer, pensando assim, na verdade, não houve tempo passando, já que tudo se expandiu de uma vez só. Ainda estamos lá, naquele único instante. Só que por falha em nossa percepção, achamos que o tempo está passando.

Segue:...tempo...

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Terrestres – Lixo e outros consumos

  • > Faz tempo que não posto. Falta de inspiração e tempo. Com um mês de atraso queria lembrar algumas coisas de uma semaninha que passei em Santos.

    >> É incrível como cidades como São Paulo e Santos são uma negação em reciclagem de lixo. Em São Paulo, desde que Maluf assumiu, a coisa degringolou de vez. O povo continuava fazendo esforço de ir até os pontos com os tambores de coleta, separavam os materiais e tudo o mais. E depois, tchuuummm, vinha o caminhão de lixo orgânico e misturava tudo. Palhaçada. Em Santos, há vários anos, a cidade passou por uma pequena revolução, com a limpeza das praias, novos serviços, estímulo cultural e separação de lixo. Rolava bem, mas agora vi que a coisa está meio capenga. Os edifícios e condomínios, grande maioria na ilha cada vez mais saturada de prédios, não se mobilizam em separar o lixo.
    E pelo jeito a prefeitura também não faz nenhum tipo de campanha. É horrível. Fiquei no apê da minha irmã e sempre separava os recicláveis, não conseguia, por mais que tentasse, misturar o lixo, que, no fim, tinha o melancólico destino daquele de São Paulo, do Maluf: tudo indo junto pro aterro. Dá uma dor no coração. Se Curitiba consegue ter uma separação e coleta razoável de lixo reciclável, por que São Paulo, não? Vão dizer porque tem muita gente? Mas os impostos são proporcionais, porra.

    >>> Em Curitiba, a coisa é legal porque há coleta do caminhão na porta. Embora lá em casa a gente separe pra dona Nina, uma catadora de seus setenta anos super ágil. Ela passa o dia indo e vindo com um carrinho de mão. Junta tudo em casa e leva pro câmbio verde, que troca o lixo por verduras e legumes. E as associações de catadores também são bastante organizadas.

    >>>> Outra coisa ruim acontecendo: torres e mais torres de apartamentos subindo em tudo quanto é canto. O zoneamento, que já não era lá essas coisas, está indo pras picas. E os tradicionais clubes da Ponta da Praia estão largados, com empreiteiras de olho pra mandar as escavadeiras em cima pra colocar mais prediões na orla.

    >>>>> Mas tem coisa legal em Santos: banda Candieiro. Tem um flautista fantástico, chamado Mogi, que toca de tudo: flauta transversal, flautas de bambu, flauta doce. As de bambu ele mesmo faz. O vocal/violonista, o baixista com jeito de metaleiro e o baterista também são bons. Boa pedida. Tocam no Torto. É só ver.

    >>>>>> Um lance bom pra criançada é o passeio de bondinho pelo centro histórico. Valongo, Panteão dos Andradas, Bolsa do Café etc. Quer dizer, fora esses, muitos dos prédios do centro estão em verdadeiras ruínas. Mas alguma coisa sendo recuperada. João Pedro aprovou a diversão. É isso por hora. Inté.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Um universo chamado Karam

Na quinta-feira, 30/8, teve leitura de textos do Manoel Carlos Karam lá no ACT, em Curitiba. Espaço bom pra apresentações. Não foi bem uma leitura. Estava tão bem montado, o recorte e colagem de vários textos de vários livros – de inéditos, inclusive – tão bem concatenados, que parecia um espetáculo (quase) pronto. Os atores, de forma despojada e sem afetação, dentro da máxima de que menos é mais, fizeram uma hora e meia de agradável viagem pelo universo karaniano, cheio de surpresas, de ciclos, voltas, reviravoltas e diálogos impagáveis.

O pior de tudo é que, quando ouvimos ou lemos textos do Karam, no fundo no fundo percebemos que eles não são absurdos como podem parecer a uma primeira olhadela. São elementos quase reais, apenas armadilhas de lógica e raciocínio, com um humor refinado e contundente. Coisas pra pensar e se deliciar.

Em suma, não foi apenas uma leitura dramática, foi um espetáculo. O fato de os atores lerem os textos é ideal para esse caso, de uma coletânea de um dos maiores escritores brasileiros desta e de outras atualidades. Karam paira sempre, às vezes em offs, como personagem oculto.

Os livros em cena, eles próprios – Cebola, Fontes Murmurantes, O Impostor no Baile de Máscaras, Comendo Bolacha Maria no Dia de São Nunca, Sujeito Oculto, Encrenca, Pescoço Ladeado Por Parafusos e outros – também se tornaram personagens, elementos de cena, sujeitos na ação.

Parabéns ao Bruno Karam, à Nadja e aos atores Michelle, Alexandre, Luiz Felipe e Diego. E ao Karam é claro. Como disse o Bruno, o texto ajuda bastante, afinal de contas.

Que venham os Taedos!

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Terrestres

  • Ataque a Fox

Eu queria assistir aos Simpsons. Mas desencanei. Acho o desenho ótimo, escrachado, divertido e desopilante. Em resumo, totalmente esquecível em minutos. Mas prestigiar o filme equivaleria a, por exemplo, pagar para o lançamento, vejamos, de um produto especial da “Veja”. Ou seja, enriquecer ainda mais uma corporação de mídia retrógrada, tendenciosa e com uma verve neoliberal que beira o fascismo.

Explico: os Simpsons é da Fox. E a Fox é o grupo de mídia norte-americano mais tendencioso e belicoso que se tem notícia. Neste exato momento, a rede deve estar nas casas dos estadunidenses mostrando “especialistas” falando sobre a necessidade irrevogável de os EUA atacarem e invadirem o Irã. Sem brincadeira, é sério.

Mesmo com os Estados Unidos tendo largado o Afeganistão ao Alá dará, terem ferrado com o processo de paz entre Israel e Palestina e promoverem a infindável carnificina no Iraque, os caras, do alto de suas torres de mármore, nas mesas de seus restaurantes chiques ou à frente de champanhe francês de 2.000 dólares a garrafa, ficam martelando para que a população peça e apóie mais uma guerra. E o pior é que, assim como ocorreu na invasão do Iraque, as outras redes acabam indo atrás como rebanho. E a merda está feita. E sabemos muito bem pra quem sobra.

Se você quer saber mais sobre a Fox e quer também dar uma força a quem a combate, tem um site legal: http://foxattacks.com/. Eles mostram a farsa em vídeo e fazem campanha para que todos liguem para os anunciantes da Fox e ameacem não consumir mais os produtos enquanto eles anunciarem na rede. Ou para que eles forcem a rede (doce ilusão...) a parar com esse jogo em que só os mais fudidos se ferram mais ainda. Enfim, é uma boa parar de consumir drogas pesadas como Fox, Globo e todas as porras de TVs brasileiras, Veja, Folhas, Estadões e quetais.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Terrestres

  • Ser ou não ser

>Curitiba quer ser grande. Mas ainda é meio matuta no sentido pejorativo do termo. Quer ser sofisticada, mas no quesito qualidade na prestação de serviços e comprometimento não chega nem a ser um burgo. Está mais pra escambo pré-mercantilista. Você compra, o cara não entrega. Quando entrega, entrega errado. Quando você pede pós-venda, se o cheque já foi compensado, esqueça, nunca mais verás a face do gajo novamente.

Em mais uma noite fria desse inverno vai não vai, fica não fica, eu e Jorge, pra variar, fugindo das neuras domésticas, fomos procurar um canto pra afogar as amarguras. Depois de procurar uma pizzaria no meio do nada, que fechou, fomos para a matriz dela, na rotatória do posto Ventania, em Santa Felicidade. A pizza de lá é a melhor do bairro. E não é das melhores, pra se ter uma idéia. Ambientezinho asséptico, o salão tinha 13 mesas – tive a pachorra de contar - e mal comportava a meia dúzia de garçons vestidos a rigor com seus aventais de pizzaiolo.

Beleza, Originais geladas tinha. E pizza também. E nós conseguimos bons brainstorms pra uma nova versão do Santo que estamos pensando pro ano que vem. Coisa pra ganhar algum larjã. Quem sabe.

Daí que justamente pelo local reduzido e pelo grande número de profissionais etiquetados do atendimento, não conseguíamos conversar direito. A cada dois minutos vinha um garçom diferente. “Deseja alguma coisa, senhor?”. “Vai pedir agora, senhor?”. “Posso colocar mais um pedaço em seu prato, senhor?”. “Mais uma cerveja, senhor?”. Não dava nem pra olhar pro lado que já vinha um deles nos oferecer algo que, sabidamente, iríamos recusar. Pôuuurrrra! Em suma, depois de comer uma pizza, chamar uma pra viagem e tomar umas poucas, nos sentimos compelidos a sair do ambiente.

Parece que toda competência no atendimento da cidade se reuniu em um salão de quatro por três metros. O que também é profundamente irritante.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Consórcio da cerveja

Outra mania do Zédu era ir ao consórcio. “Consórcio, que porra é essa?”, eu perguntava. “Vem aí que você vai ver”, dizia. Numa sexta-feira cheguei de Bauru todo curioso, achando que haveria um programa novo na cidade, algo para estimular espíritos e saciar o corpo. Lá fomos nós. Eu, ele e uma rempa de caras. O Gaspar, inclusive. A “descoberta” do consórcio tinha sido do Gaspar, que começou a arrastar o pessoal para esse interessantíssimo programa de sexta à noite. Pior é que eles me disseram que às vezes rolava também às segundas! Figura ímpar o Gaspar. Nunca se sentava de costas para as portas e janelas de qualquer lugar em que estivesse. “Para prevenir e já estar preparado caso alguma coisa aconteça”, dizia ele. Ficava sempre na ponta da cadeira e não encostava. Tomava uma tulipa de cerveja em três únicas goladas.

Voltando, o consórcio vendia de tudo: carro, moto, casa e o escambau. Na sexta eles promoviam os sorteios e lances pros associados poderem retirar seus bens com antecedência. Ficava um gajo lá na frente, no microfone, e umas cinqüenta pessoas sentadas nas cadeiras de plástico branco. Ninguém parecia muito animado, a situação econômica na época tava ruim pra caramba. E tava todo mundo interessado somente em ver se tinha sido sorteado. Assim que as pessoas viam que não tinham sido contempladas, caíam fora, putas da vida.

E nós lá no fundo, uns sete ou oito caras, só dando uma conferida. O Zédu, pra variar, ajudado pelo Gaspar, comandava o suprimento de cerveja e salgadinhos. A gente ia até um balcão onde o atendente já conhecia a galera de longe. “Vocês não são do consórcio, não podem pegar cerveja”, dizia, com cara de poucos amigos. Daí a gente virava as costas e ouvia um “pcht”, e ali estava a cerveja geladinha aguardando. Sacana o sujeito, que dava uma risadinha de canto de boca.
O sorteio rolando, os pobres consorciados caindo fora e uma trilha de cervejas ia se formando aos nossos pés. Ao final da noite, a casa ficava vazia, fim de festa geral. E saíamos com dezenas de copos de plástico cheios de cerveja quente. Divertido pacas.

O que não se faz por um pouco de álcool e (pseudo) diversão...

A seguir: “Tá safo!”

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Bitte, ein schoppenbier

“Vai lá.”
“Onde?”
”Vai lá pegar um chope.”
“Mas eu já tô com um.”
“Vai lá!”
“Porra, cara, deixa eu terminar esse aqui.”
“Deixa aí. Vai lá e pega mais um. Um não, dois. Vai!”

Não tinha como argumentar. O Zédu é um dos caras mais convincentes desta versão de universo que estamos presenciando. Fui lá pegar mais um, um não, dois chopes. Vim com eles e coloquei na mesa. Zédu fazia contas.“Deixa eu ver... Se em treze minutos eu tomo um chope, e são seis e meia da tarde... Então até as oito dá pra tomar mais uns sete chopes.”

O horário era imprescindível nos cálculos. O local era o bar do Torto, um dos mais míticos de Santos. Devo parte de minha formação como ser humano a esse local pequeno, normalmente lotado até a tampa, sufocante e com música ao vivo de estourar os tímpanos. E torto, é claro, porque fica no térreo de um dos prédios mais inclinados da orla.

Naquele momento não estava lotado nem apertado. Aliás, estava muito vazio: tinha só umas dez pessoas, incluindo eu, o Zédu, o Walter e o André. E o som era maneiríssimo e pianinho: um quinteto de choro. Era fim de tarde, mas como o local era praticamente todo fechado, mal se notava que o dia ainda lutava inutilmente contra a noite que vinha.

Era sexta, dia de rodízio de chope das seis às oito, ou coisa que o valha. Preço único e não pagava couvert. Depois disso é que vinha o roquenrol. E nós, claro, queríamos ver como era a coisa, aproveitar pra entrar na nigth calibrados sem gastar muito.

Zé, consciencioso de sua missão nesta terra, não deixava a peteca cair. No auge de seu delírio schoppenbieriano, nos fazia largar as tulipas na mesa e comandava mais um ataque ao tirador. Era um verdadeiro general, traçando metas e estratégias, sincronizando relógios para o gran finale. Como bons soldados rasos que éramos, obedecíamos, mesmo sem saber quais seriam as vantagens e objetivos da empreitada. Mas creio que, em vez de conseguir apenas umas doses na faixa até a hora em que o rodízio terminasse e começasse o agito, os planos se estenderam para garantir um suprimento de beberagem que atravessasse a noite, não tendo que gastar mais um tostão que fosse. Ele comandava: “Isso, agora deixa esse aqui e vai pegar mais um”. “Você”, apontava para outro de nós, que subitamente estacava meio receoso da ordem que iria vir. “Espera ele voltar e traz mais dois”, sentenciava.

A mesa ia ficando repleta de copos com chopes em vários níveis. Um visual incrível. Íamos tentando tomar rapidamente, mas, supostamente alimentado com informações privilegiadas da vanguarda, a voz de comando indefectível do incrível Zé era mais ágil, e tínhamos que ir ao front novamente trazer mais amostras do precioso líquido.

Assim foi. Quando finalmente o barraco começou a esquentar, chegando o pessoal da noite, as minas, os músicos e tudo o mais, já era tarde. Exaustos pelo ir e vir, e frente a uma mesa que estava totalmente tomada de chopes meio bebidos e inteiramente quentes, nós já estávamos em estado de neurose de guerra. Um, perdido no banheiro minúsculo. Esse acho que era eu. Outro, vomitando embaixo da escada. Mais um, desaparecido em combate, talvez tentando encontrar o rumo de casa pela beira da praia. “Casa? Eu tenho uma casa? Aliás, quem sou eu?”, provavelmente se questionava essa pobre alma em confusão.

A coisa seguiu assim, melancolicamente, com a noite terminando mais cedo e nós imprestáveis antes das dez horas. Mesmo assim, tentamos novamente numa outra sexta. Mas demos com a cara na porta, ou melhor, no balcão. Quando fomos iniciar toda a patuscada de novo, indo pedir chopes em cima de chopes ao barman, ele nos negou. “Nananina. Eu vi o que fizeram na outra vez. Agora, só dou um chope quando me devolverem o copo vazio do outro.”
Esperto, muito esperto.

A seguir: "Consórcio da cerveja"

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Terrestres

  • Fabulinha do desastre

> Olha só aquele careca com fundos olhos marcados. Ele olha pros escombros e diz: que tragédia, nunca vi nada igual!

Se é que disse mesmo. Tá no jornalão. Tá na tevezona. Tá na semanal. Então deve ter falado, os meios nunca mentem a mensagem. Ele se esmera em sua pose e diz: Queremos providências! Queremos os culpados!

Que fleuma, quanta objetividade, é um verdadeiro líder!, assomam comunicadores em sua inimitável e irrefreável lida diária.

Choram mães e filhos, a eles não se pode negar total e irrestrito direito. Dor impassível e irreconhecível por quem está de fora. Esses devem ser sagrados com o respeitoso silêncio.

Mas aquele senhor, o de careca pronunciada e olhar sombrio, aquele mesmo, amigo do outro médico narigudo e de oclinhos. Esses amigos, há bem pouco tempo, deixaram uma rebelião assomar-se diante dos portões dos bandeirantes. Como patinhos de jogo de tiro em parque de diversões, policiais desavisados foram caindo um a um. Assim, sem mais.

E depois, aquele senhor, junto com o colega burguesinho e o outro velho quase careca metido a filósofo de carteirinha que acabou tenho o rojão estourado na mão, esses mesmos, deixaram que a polícia – aquela, paulista, boazinha, cheia de escrúpulos – saísse vingando as dores ao bel prazer, assassinando indiscriminadamente quem viam pela frente.

Sem derrubar um único avião, esses caras causaram e causam mais mortes que qualquer irresponsável acidente como o recente. Mas é claro, não falemos disso. Jornalões e tevezonas também têm mais o que fazer além de remoer fatos velhos, o que passou, passou. E, afinal, aqueles presuntos – população em geral e policiais inclusos – eram pobres, de onde vieram tem muito mais, então pra quê tanta celeuma?

É por isso que o nobre líder da locomotiva sem freios do país agora se debruça oportunamente sobre as vítimas e diz, conforme os jornalões e tevezonas: Que desgraça! Queremos os responsáveis!

Vai que é tua, meu garoto, que um dia você será presidente, disse a ele um padrinho, pegando-o no colinho e lhe dando um caramelo superfaturado. Brigado, tiuê, quando eu crescer eu também quero ser qui nem u sinhô, ter televisão, jornal e um monte de deputado no bolso, disse o petiz, saindo, serelepe e feliz, pelas belas margens do Tietê.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 8

Sistema último de saúde

Eu, grogue feito o quê, dando entrada num posto de saúde de última categoria numa cidade paupérrima. Dá pra adivinhar o esquemão. Uns dois gatos pingados atendendo. Apenas alguns infelizes esperando, a madrugada até que tava boa. Depois da espera de praxe – afinal, eu só tinha voado de um carro num capotamento, pra quê a pressa? – entrei numa sala em que um cara, duvido que fosse médico, me atendeu. Fez umas perguntas, deu uma olhada geral, tirou pressão, ouviu os batimentos. Por sorte ou fortuna, aparentemente só tive arranhões. O cara, sem a mínima vontade de trabalhar, queria me dispensar: Tá liberado.

Não estava no meu melhor, mas mesmo assim eu conseguia pensar no mínimo que qualquer um nessa situação pensaria. Mas como assim? Eu sofri um acidente. Capotei, me esborrachei no asfalto. Você não vai tirar nem uma chapa da minha cabeça? Não, disse o cara, não precisa. Eu encrenquei: Queísso? E se eu saio daqui e pimba, me dá um treco? Precisa de um raio-X pelo menos. O cara, nada, tentando se livrar da incumbência e do gasto: Não precisa. E eu: Precisa. Ele: Não precisa. Eu: Precisa. Até que ele concordou, só que me ferrou pra ter um gostinho: Mas se tirar chapa, tem que ficar aqui em observação. Fazer o quê, aceitei. Fizemos o raio-X e depois fui para um quarto. Tinha umas seis camas, só uma ocupada. Deitei, e o Flávio falou que ia embora e mais tarde vinha me buscar. Apaguei, dormi sem sonhos, um alívio naquela altura do campeonato.

Já quase perto do meio-dia, acordo. O local tava cheio, todas as camas lotadas, gente gemendo, gente passando pra cima e pra baixo pelo corredor, maior confusão. Pelo jeito o domingão era dia de ziriguidum no postinho. Ao meu lado, uma senhora reclamava de dor. No outro canto, um daqueles especialistas que sempre estão por perto, um senhor, também deitado, dava seus pitacos: Ih, isso aí eu sei o que é. Dor no abdômen. Um conhecido uma vez teve isso e morreu logo depois, não deu tempo nem de socorrer. E ficar aqui internado é ainda pior. Um primo meu entrou bonzinho e logo depois morreu de infecção hospitalar. Legal, tio, era o que eu tava precisando. Mais uma vez, eu ia vagarosamente em direção à consciência total.

De repente, entram o Flávio com dois de seus irmãos e uma cunhada. Tinham ido me buscar. Me viram e racharam o bico. Muito engraçado. E aí, vamos embora? A muito custo, conseguiram levar uma enfermeira pro quarto. Ih, pra ir embora tem que esperar o médico pra ele dar alta. Cadê o gajo? Só depois das duas da tarde. Era quase meio-dia e eu realmente não tinha intenção de ficar ali um minuto mais. Levantei, tirei o camisolão, achei minhas calças e saímos fora.

Não fomos longe: paramos num buteco logo em frente. Sentei. Olhei o dia: nublado, feio. Respirei. E finalmente pude pedir com toda a calma possível: Uma cerveja, pelamor!

A seguir: “Bitte, ein schoppenbier”

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Terrestres (quase aéreas)

  • Direto e reto

> Mais um acidente. E 200 almas queimam até não sobrar nada. O país é essa incompetência. Quem faz a pista, faz meia boca. Quem tem que treinar os pilotos treina meia boca. Quem tem que organizar a zona, faz meia boca. Quem tem que atender decentemente o público, meia-boca. E tudo porque tá todo mundo é a fim de embolsar o seu salarinho de merda, seus dez por cento, seu lucro empresarial e que se lasque o resto. Pra quê pensar no outro?, é um desconhecido, mesmo. E assim vamos nos desconectando de tudo.

>> Fora a sensação de transitoriedade que sempre fica. Ver aquela bola de fogo consumindo instantaneamente tudo é meio apocalíptico, impressiona. Tá vivo, tá morto. Assim, de repente. Viver é isso. Como diz o Joca, a vida é uma doença de nascença. Tudo bem que deus é um fdp por criar essa coisa meia-boca também. Mas a gente poderia tentar se ajudar um pouco.

>>> E as TVs resfolegando em cima, fazendo conjecturas, derrapou, molhou, apagão etc. e tal. Que pena, né? Acabou (um pouco) com o ufanismo escroto do pan pan pan pan. Já que vamos começar a falar de merdas do sistema aéreo, que tal também aproveitar para falar de irregularidades do pan pan pan pan? Do monte de grana gasto à toa. Das suspeitíssimas ações do COB e seus apadrinhamentos? Ah, não, deixa pra lá., vai estragar a festa, cara chato, pô!

>>>> Já no primeiro anúncio da merda, eu achava que o cara tinha entrado fudidamente, não dava realmente pra dar aquela porrada do jeito que foi se ele não estivesse a toda velocidade e sem conseguir frear: ou deu pau no sistema de freios e rodas. Ou nos flaps. Ou no psicológico dos pilotos. Ou tudo isso junto.

>>>>> Óbvio na cara: Congonhas já deu. É antigo, parece uma rodoviária. Precisa se tornar aeroporto de baixo tráfego. Mas quem tá interessado nisso? As companhias aéreas? Os governos? Os executivões da Berrini, ali ao lado? Claro que ninguém. Enfim, vamos para o próximo tópico.

>>>>>> Pois não, senhor? Quer janela ou corredor? Gol ou TAM? Queda livre ou tentativa frustrada de aterrissagem?

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 7

Vôo de galinha

Fomos embora. Pegamos a avenida pra Várzea Paulista, um horror de cidade. Íamos aliviados por tudo ter acabado. Pessoalmente, eu estava apreensivo com meu futuro por ali. Primeiro porque, com certeza, um dia eu iria cruzar novamente os três imbecis armados. Depois porque, se com uma semana na região eu já estava entrando em uma lama dessas, não queria ver como seria depois de algum tempo a mais de casa. Mas, no fim, o alívio momentâneo já era suficiente. Entramos na cidade, passamos em frente ao pronto-socorro e seguimos no caminho para o sítio. E tudo apagou.

Acordei com dois PMs falando comigo. Da escuridão, fui me aproximando de algo consciente. Primeiro, ouvi vozes, mas sem sacar o significado. Abri os olhos. Vi o rosto gigante de um dos PMs, que estava agachado, debruçado sobre meu rosto. Minha visão estava se readaptando, e o que eu via lembrava o a filtragem por uma grande angular. Daí que a cara do policial estava totalmente desproporcional ao resto do corpo. Ele começou a falar comigo. Seu nome? Consegue sentir os pés? Tenta mexer. Consegue sentir as mãos? Mexe aí. Consegue mexer o pescoço? Fizeram tudo como manda o figurino. Felizmente eu conseguia me mexer sem problemas. Notei que eu tava estirado, atravessado na rua, próximo ao meio-fio. Ao meu lado, a traseira do mastodonte verde. Não entendi nada. Os PMs tavam putos. Quase prenderam o Flávio. Eu, perdidaço, dando braçadas em uma piscina de gelatina rumo à consciência.

O que ocorreu é que aqueles gemidos que o jipão tava fazendo desde a tarde era algo bem mais grave que a gente supunha. O eixo das rodas traseiras travou, o carro deu uma guinada e capotou. Bateu no chão uma vez de rodas pra cima e caiu em pé de novo. Eu voei longe, desta vez mais longe ainda que na lanchonete. Tava virando mania. O Flávio, segurando na direção, conseguiu se manter sentado. O que o salvou de ser esmagado quando o jipe bateu de cabeça pra baixo foi o enorme pneu estepe que ficava preso na traseira e o quadro do pára-brisa. Os dois amorteceram a queda, fazendo o papel do santo antônio inexistente.

O Flávio ficou consciente, só cortou o supercílio. Ele conseguiu arrastar o jipe pra perto do meio fio, mais à frente do lugar onde eu estava desmaiado. Saiu correndo e chegou esbaforido ao pronto-socorro por onde acabáramos de passar. Foi pedir ajuda a um carro da PM estacionado. Os policiais desceram a lenha: O quê? Cê tá brincando! Só pode ser brincadeira! São cinco pras cinco da matina. Daqui a cinco minutos a gente vai largar o batente, e você chega aqui dizendo que capotou um jipe? E o pior, que tem vítima? Foi com esse espírito de servir e proteger que os valorosos homens da lei foram lá ver o que tinha acontecido. Quando chegaram, viram o jipe parado e eu estiradão na rua um pouco atrás dele. Engrossaram com o Flávio. Achavam que ele tava inventando: Você atropelou esse cara, tá doidão? Vai ser preso agora mesmo! E o Flávio, de alguma forma, mesmo naquela confusão física e mental, conseguiu chamar os caras pra real. Explicou o que tinha acontecido. Mas continuavam mordidos. Eles teriam que nos atender, fazer ocorrência etc. e tal, o que acabaria de vez com sua cervejinha de final de turno, que, aliás, eles já estavam tomando bem antes de a gente aparecer, a julgar pelo bafo e pelo jeito de falar.

Quando fizeram todos os testes e viram que eu estava praticamente inteiro, me mandaram levantar. Fomos até o pronto-socorro. O jipe ainda andava de forma precária, e o Flávio conseguiu levá-lo até o estacionamento. Entrei. Cidade capenga, pobre, posto sob responsabilidade de plantonistas. O atendimento seria de primeira, como dava pra imaginar.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 8 – Sistema último de saúde"

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 6

Amigos visíveis

Bom, eu tava encurralado no fundo do bar pensando como escapar inteiro daquela situação. Imaginava um jeito de sair dali sem ser depenado pelos três meganhas frustrados – porque era o que eram, caras que adoravam andar e trocar figurinhas com a polícia, se é que me entendem. Fiquei ao lado de uma mesa que tinha um povo legal, uns dois caras e duas garotas. Uma delas fala: Fica aqui atrás, ninguém vai te encontrar. Gente boa mesmo esse pessoal, me deram proteção.

Lá na frente, o auê ainda estava rolando, eu não podia saber o que acontecia porque não queria dar as caras. Sei que tava um agito e, de repente, o Flávio irrompe do meio do povo: Fica aí, cara. O Ferpão quer o teu couro. Eu vou lá fora falar com eles. Não, cara, não vai não, eles vão te bater. Minhas súplicas foram em vão, e ele insistiu. Eu conheço os figuras, não esquenta. Eu, querendo agora dar uma de machinho, bravateando: Então vou contigo. Flavião não deixou. Não. Fica aqui. No que mostrei que ia insistir em ir com ele, uma das garotas que estava na mesa – uma negra, não muito alta, mas gordinha, rechonchuda mesmo, e forte pra caramba - se manifestou pro Flávio: Pode deixar, ele vai ficar te esperando aqui. E me agarrou por trás, segurando meus braços fechando firmemente suas mãos na minha frente e evitando que eu me movimentasse. Ela era forte, depois fui saber que era policial militar de baixíssimo escalão, talvez soldada rasa. Viu? Nem tudo está perdido.

Aguardei naquele abraço da mamãe ursa, de vez em quando pedindo pra ela me soltar. Não, vamos esperar. Então tá. Esperamos. Depois de uns quinze minutos naquela situação ridícula, com ela me encoxando, volta o Flávio: Tá tudo certo, falei com eles. O dono do bar também foi lá ameaçou chamar a polícia e fazer maior auê. Eles foram embora, mas é melhor esperar um tempo pra eles desistirem de vez.

Beleza. Virei pra minha protetora. Viu? A barra tá limpa, pode me soltar. Ela sorriu matreiramente. Ahhh, já? Me agraciou com um belo sorriso e me soltou. Agradeci aos meus benfeitores e resolvi tentar relaxar. Desta vez, de verdade. Fui procurar algo pra beber. Eu não me sentia real, toda aquela bruma e essa história maluca – sem falar a cachaça – tinham me deixado entorpecido. Tanto que não vi pra onde o Flávio tinha ido. Ah, que se dane. Voltei a dançar pra tentar tirar toda ziquizira no suor.

Como que pra finalizar em grande estilo, lá pelas tantas encontro o Flávio sentado numa mesa. Os dedos da mão direita, vermelhos e inchados, enfiados em um copo com gelo. Perguntei o que tinha acontecido. Ele, que também tava meio zonzo como eu, falava alguma coisa sem nexo. Naquele som alto, eu não entendia lhufas. Olhei os dedos detonados dele e fiquei puto. Porra! Os caras te machucaram, né? Caralho, que foda. Eu sabia, cara, você não devia ter ido lá falar com eles. Esses caras são uns animais. E o Flávio: Não, não é nada disso. Acontece que ele também resolveu dançar, relaxar, pular, suar e mandar tudo pra pqp. Se empolgou demais no bailado e enfiou a mão num ventilador de parede. Pode parar. Pra mim chegava. A conta, por favor.

Resolvemos ir embora pra tranquilidade do sítio, descansar, dormir, esquecer. Já era alta madrugada. O domingão já tinha chegado sorrateiramente e seria ideal para ficar bundando o dia todo, curando as feridas em um lugar pacato e silencioso. A longa noite de ameaças e sustos finalmente tinha terminado.

E foi aí que capotamos o jipe.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 7 – Vôo de galinha"

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 5

Doce ilusão

Depois da confusão na lanchonete, tentando retomar o fio da meada, me acalmar e não me mijar, fomos pra cidade. Rodamos na noite e paramos na frente de um bar, que me escapa o nome agora. Era rústico, mas recomendado. Era fechado, tinha que pegar ficha e tinha couvert. Naquele momento, parecia um abrigo. O grupo que ia tocar era conhecido, os caras sempre iam ao jornal. MPB pop era a especialidade, som dançável. Entramos. Apesar do som alto e de estar lotado, escuro e esfumaçado, a adrenalina começou a descer. Tava seguro, gente nova, mulherada, e, principalmente, cerveja, que era tudo que a gente tava precisando. Começamos a descontrair, finalmente. E dançamos muito, tomando umas e já esquecendo as agruras anteriores. O ambiente cheio e escuro parecia dar proteção e arriscávamos até umas azarações.

Não me lembro quanto tempo fiquei naquele relax todo. Foi o suficiente para esquecer o que houvera. Mas, pra variar, a coisa nunca é tão simples. O cara que me apontou a arma, o tal amigo do gorila, de repente tava ali, do meu lado. Eu pulando, suando que nem um cavalo acompanhando o som, as luzes colorindo tudo, e o cara, como uma aparição, ali, me olhando. Quando me dei conta, estaquei. O cara tava vestido todo de preto. Camisa meio social, calça preta agarrada também, os caras gostavam da coisa. Parecia saído de algum rodeio. Só não vi se tava de botas. Que porra, pra quê pensar em botas nessa hora? A coisa ia feder de novo. Não deu outra.

O cara chegou de lado, pegou meu braço, me puxou e falou no meu ouvido: Vamos lá fora conversar. Conversar? Conversar o quê? Não vou não. O cara achava que eu era otário. Soltei meu braço e fiz menção de sair andando. Ele pegou de novo: Vamos lá fora. Pra quê? O Ferpão quer falar contigo. Só faltava essa. Me desvencilhei mais uma vez: Cai fora, eu não vou. É melhor vir, ele quer bater um lero contigo. Eu começava a ficar meio preocupado de novo. Ele que venha aqui dentro, a distância é a mesma. O capanguinha cowboy ficou meio confuso. Não era sempre que tinha que usar tanto raciocínio, o hardware e o software estavam obsoletos havia eras.

Quando percebeu que eu tava vazando, veio e apelou pra força. É melhor vir por bem! Não, cara, eu não vou! Eu resistia, o pessoal dançando em volta começava a sacar que tava rolando um barraco. Se afastavam e pude trocar bons passos de dança com meu par predileto da noite. Quando ele sacou que não ia conseguir me arrastar, levantou a camisa e mostrou a pistola na cintura. Se você não vier por bem, vai por mal! E sacou a arma, mas manteve apontada pro chão, meio mocozada.

(Nesse momento, um parêntese. Tenho que agradecer a todos os meus mestres e professores de capoeira. Que me ensinaram essa nobre arte. Todas as formas de movimentos no ar, em pé ou mesmo caído no chão. A arte da queda e da enganação. A verdadeira ginga. Porque só mesmo isso me deu a desenvoltura, a presença de espírito e a criatividade para aplicar tão infalível golpe naquele momento: dar no pé.)

No que ele levantou a mão pra tentar me pegar de novo, eu tava muito perto dele. Como ele se movimentou bruscamente, esbarrou em mim e aproveitei a deixa. Pra evitar ter que tomar porrada de novo, me adiantei. Fingi que tinha tomado um chega pra lá e caí em cima da multidão em volta, fazendo todo o estardalhaço possível. Abriu-se imediatamente uma clareira em volta do cara, todos falando Ohhhhh! e se voltando pra ele. Constrangido, o cuzão escondeu a arma de novo. Eu já tinha saído fora agachado, mimetizado entre as pernas de centenas de pessoas. Fui correndo até o fundo do bar. Mas não ia adiantar. Não tinha saída. Eu não sabia o que fazer. Tive a sensação de que alguma coisa não ia bem, de novo.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 6 – Amigos visíveis"

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 4

Hambúrguer com bifas

Tava lascando as primeiras mordidas no sanduíche, laricado. Vem um carro, estaciona na frente da lanchonete, ao lado do jipe. Três caras descem. São marombados. Esquisitos. Um deles é grande paca. Loirão, cheio de cachos. Calça jeans agarrada, jaqueta jeans. É a gangue local. Flávio os conhece, cresceu trombando com os tipos. Dois deles o cumprimentam no bar. O grandão parecia meio alterado, mas mesmo assim, estava dono de si. Senta-se na minha mesa. Na minha frente. Olhando fixamente pra mim. Eu lá comendo o sanduba. Que merda, eu tinha um talento da porra pra atrair confusão. Lá vamos nós, pensei eu, em minha imponderada arrogância. Fiquei ali, fingindo que nada tava acontecendo. O cara encarando. Era grande mesmo. Fudeu.

Acho que eu não tava na terceira mordida quando o cara falou. Até então ele tava encostado na cadeira, de braços cruzados, mas se debruça em minha direção e manda: Esse teu cabelo aí é de viado, né mesmo? Na época, eu tinha cabelo. E tava grande. Há momentos cruciais nos quais nos perguntamos por quê exatamente achamos que a humanidade é algo mais que uma ameba. A minha atitude naquela hora, que eu nutria muito frequentemente em diversas ocasiões, me fez viver vários desses momentos sofríveis. Esse era um deles. Em terra estranha, sem casa, sem grana, uma noite fria, uma cidade obscura. O que mais eu poderia fazer?

Olhei fixamente para ele e devolvi: Eu não acho que um ser ignorante como você pode entender. O cara ficou vesgo de surpresa. Antes que eu desse a primeira respirada depois da última palavra, levei um tapão na orelha direita e voei longe. Cadeira, mesa e sanduba pro chão. Flávio, que tava conversando com os camaradas do cara, veio correndo. Vieram todos. Os três agarraram o animal, que vinha me pegar, berrando. Pra mostrar que eu não era de brincadeira (só pode ser brincadeira…), achei que tudo tava fudido mesmo (eu tava enganado, ainda não era aí), levantei num pulo e comecei a provocar: Filho da puta! Viado! Vem, vem! O perfeito idiota. O cara urrava e os três tentavam contê-lo. Ferpão, ô Ferpão, pára com isso! Era o Flávio falando com o cara. Ferpão. Putaquepariu, o cara se chamava Ferpão, que bosta. Eu ainda desafiando, um dos amigos dele vem e tenta me conter, me agarra pelo colarinho: Fica quieto! Eu não, quem o cara pensa que é? Fica quieto! Foi me empurrando pra calçada até eu ficar encostado no mastodonte verde. Fica quieto! Não fico! Fica, que eu sou polícia.

Mais uma vez, mandei tudo pras picas, então era agora que tava tudo fudido mesmo. Grande merda, vai fazer o quê, me prender? Calaboca! Não calo! E o cara saca da cintura uma pistola e coloca na minha testa. Calaboca! Nesse ponto eu juro que achava mesmo que tava tudo fudido. Mandei às favas a porra do universo alternativo e todas as porras alternativas que ele tinha me reservado. Berrei com toda raiva, muito provavelmente seria a última vez: Vai atirar, é? Então faz de uma vez! Nisso o Flávio chega correndo, afasta o cara. Guarda isso, o que você tá fazendo? Que infantilidade, pô! Sai fora, já pensou no que você tá fazendo? Tá maluco? O cara hesitou. Algumas pessoas já iam meio que chegando, assistindo ao deprimente espetáculo. O sujeito recuou pro seu grupinho. Flávio me mandou entrar no jipe e saímos queimando o chão. Flávio, puto: Porra! Que merda é essa? O que você tava pensando? Eu não ouvia nada, chorava pra caralho. Merda total. Mas tava tudo ok. Seguimos pra cidade. Tentar baixar a adrenalina, relaxar, esquecer. A noite prometia!

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 5 – Doce ilusão"

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 3

O terceiro selo

Nossa contemplação noturna no alto do Japi foi subitamente interrompida por algo estranho. De repente, do nada, em plena noite límpida, veio uma neblina que rapidamente cobriu tudo. Não conseguíamos ver um palmo à frente. Acendemos os faróis do jipe, e o cenário iluminado do velho observatório todo carcomido por ferrugem com aquela fumaça em volta me trouxe uma sensação esquisita. Meio que um nó no estômago, uma ansiedade inesperada.

Até então estávamos animados, falando das novidades que estávamos implantando no jornal. O súbito fog nos fez calar. O frio aumentou, me sentia dentro de uma caixa cheia de gelo seco. Olhávamos para o nada no abismo escuro meio esbranquiçado onde antes havia uma cidade inteira.

Sem mais, de repente, a espessa neblina se foi fantasmagoricamente como havia chegado. Em coisa de minutos a vista era cristalina novamente. Voltamos a ver Junds iluminada lá embaixo. Parecia a mesma cidade. Mas lembro de ter pensado que havia algo diferente, brinquei com possibilidade de física quântica e mais além, como se realmente a teoria que especula sobre os universos múltiplos fosse aplicada na prática. Partimos de um deles e aterrissamos em outro. A nossos olhos, tudo como sempre, ninguém diria que é outro mundo, outra consciência, outro universo. Mais um sinal ignorado. O terceiro selo do envelope do destino sendo aberto trazendo maus presságios.

Resolvemos descer. Tá batendo uma fome. Pois é. Subimos no jipe e fomos embora. O jipe tinha uma precária capota de couro. E não tinha santo antônio nem nada. E maior frio. A descida foi bem pior que a subida. Era pra ser uma estrada. Mas com a preservação ambiental do local, tinha virado uma trilha. Uma buraqueira só. Pelo menos pra baixo é difícil ficar encalhado. Conseguimos sem muitos sustos.

Sábado frio, a cidade estranha. Era novo ali, me incomodava. Fomos até uma lanchonete conhecida na 9 de julho, uma avenidona. Mas o local em volta era meio deserto. A lanchonete ali, nenum movimento por perto. Era um casebre, abertão para a rua, balcãozinho lá no fundo. Simplão. A gente ia se preparar pra ir ouvir um som ao vivo em outro canto. A cachaça fumegando na veia. Sentei numa mesinha no abrigo da frente. Flávio foi dar oi pro dono, era local, estava meio que voltando, conhecia muita gente. Olhei o cardápio, pedimos cerveja. Chamei um sanduba. Esperei.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 4 – Hambúrguer com bifas"

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 2

O gemido do mastodonte

Ao sair da mecânica, sol beleza e calorzinho em meio a um frio mês de junho, fomos, é claro, tomar umas no mercado municipal, acompanhadas do famoso bolinho de bacalhau local. Umas e outras e tudo o mais, emendamos com a noite, quando o frio começou a apertar. O jipão 4 x 4 andando, mas fazendo um ruído esquisito, nada a ver com o acelerador e sua companheira gambiarra. Paramos, demos uma olhada por baixo, nada aparente. E o carro continuava a rodar sem problemas. O que será isso? Sei lá, tá andando na boa, deixa pra lá, vambora. Segundo aviso ignorado, fomos em frente. O mastodonte verde, notando ou não que seus gemidos não surtiam efeito, resignou-se a eventuais reclamações, ignoradas solenemente por seus infames ocupantes.

Inventamos de subir a Serra do Japi, belíssimo e raro trecho de mata atlântica encravado em um enorme maciço de cristal. Antes, no caminho, já meio rural, paramos em uma casa onde um senhor vendia cachaça artesanal. Compramos um litrão e fomos dando talagadas enquanto trilhávamos o cada vez mais esburacado percurso. Depois de um razoável tempo e algumas dificuldades, chegamos em um pico. No local tinha um antigo observatório astronômico abandonado – obra, se não me engano, do saudoso Kiko de Mattei, visionário amalucado mezzo ambientalista que sempre dava vazão aos seus sonhos, nem sempre bem compreendidos.

Estamos lá, entornando o caldo, o frio batendo, e temos uma visão privilegiada da cidade iluminada lá embaixo. O céu limpo, totalmente transparente, ajudava a fazer o retrato mais bonito ainda. Tava tudo muito bom. Bom demais pra dizer a verdade. Eu tinha acabado de conseguir emprego depois de pastar meses em São Paulo sem porra nenhuma. Tava conhecendo pessoas, grandes amigos, novas garotas, deixando pra trás agruras amorosas. Realmente, era um momento especial.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 3 - O terceiro selo"

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Esconde-esconde com a morte 1

Aviso número um

Jorge Miyashiro, eterno companheiro de mesas e melosidades de bar, adora essa história e a divulga frequentemente, me pedindo inclusive para contar para amigos em comum, para desespero dos ouvintes ao terem que aturar minha falta de timing (pra ser bem gentil comigo mesmo) ao declamar causos. Enfim, acho que talvez realmente seja digna de prosa.

Era inverno. Fazia uma semana que eu tinha chegado a Jundiaí pra trabalhar num jornal. Meu camarada Flávio, que havia conhecido no carnaval dentro de uma caverna no Ribeira, era diretor de redação, mas mesmo assim era legal. Baladeiro que só. Secava o bar, como costumava dizer. Nos últimos anos, depois de tomar daime, parou com tudo, bebidas, cheiradas, fumadas e quetais. Jogou litros e litros de bons etílicos pelo ralo e começou a comer só coisas esquisitas, necas de carne. Naquela época, porém, estava em plena forma. Aliás, estávamos.

Voltando ao caso, era o primeiro sábado que eu passava em Junds, uma cidade-dormitório a exato meio caminho entre São Paulo e Campinas; hoje me parece ter evoluído um pouco mais. Fomos trabalhar de manhã. Jornal pequeno, atirávamos pra todo lado, pautando, escrevendo, editando, dirigindo carro, arrumando encrenca com prefeitura e otoridades locais e, eventualmente, publicando. Brincadeira: era jornal diário, mas não saía às segundas.

Eu tinha uma pauta pra preencher uma página de domingo dedicada a assuntos familiares. O tema era – vejam que meigo – musicalização infantil, exatamente dez anos antes de meu rebento João Pedro vir ao mundo e mostrar a real dimensão de toda essa parafernália traquitana-educativa que precisamos conhecer e consumir. O carro do jornal tinha saído, e eu tinha que chegar na tal escolinha até as 11 horas. Flavião aproveitou que tava saindo e me deu carona em seu jipão Engesa, imenso, cor verde oliva.

Távamos nos destinando ao local onde pimpolhos tamborilavam bumbos, sopravam flautinhas e rebentavam matracas nas cabeças uns dos outros quando o carro deu pau. Empacou. O cabo do acelerador tinha arrebentado. Tivemos que correr pra chamar conhecidos dele que tinham uma oficina logo ali, mas que tava quase fechando. Um cara deu um jeitinho e deu pra arrastar o carro até o local. Os caras analisaram o mastodonte verde e constataram que precisavam de uma peça nova para colocar corretamente o tal cabo. Mas isso, só na segunda. Flávio não se conformou. Fim de semana sem carro? Nada disso. Ainda mais que ele morava em um sítio em Várzea Paulista, onde eu ficava de favor. Na época, minha casa era uma mochila, ah, saudade dessa mobilidade toda.

Ou seja, ficava difícil até chegar em casa sem o bichão. Flávio tenteou que tenteou que convenceu o cara a fazer uma gambiarra. O sujeito insistiu, disse que não ia ficar bom, que o melhor era esperar. Nós, irredutíveis. Sem carro não ia dar. Aviso número um ignorado, fomos embora. Já eram umas duas da tarde, e minha pauta tinha furado, as crianças já tinham ficado de saco cheio de infernizar os professores e a escola tinha fechado.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 2 – O gemido do mastodonte"

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Terrestres

  • Sampa mid-day - 2

    Outras coisas legais de São Paulo:

    > Nos finais de semana agora podem-se transportar bicicletas no último vagão do metrô. Levei meu filho ao parque (do Tucuruvi ao Carandiru) e sua minúscula bicicletinha. Acho que nem precisa levar no tal bonde especial, ela pode ser carregada no cangote, mas quis prestigiar a medida. Achava que iria encontrar muitos ciclistas, mas a magrelinha do meu pequeno era a única no horário em que fui, no domingão de estréia de inverno mais quente dos últimos anos.

    >> O centro “histórico” continua lindo. Ou quase. Ou nem tanto. Tá bom, tá bom, tô até exagerando, mas uma caminhada num sábado de manhã de sol no trecho Largo São Bento -> Largo São Francisco -> Viaduto do Chá -> Teatro Municipal -> São Luiz -> República é muito legal. Os calçadões e ruas dali têm uma atmosfera que só São Paulo tem (e não tô falando da poluição, não sejam engraçadinhos). E sebos. E galerias de “importados”. E um belo visual.

    >>> Apesar da sujeira das fachadas depois da retirada dos outdoors e placas, o centro – e toda a cidade – ficou bem melhor. Falta, é claro, estimular o pessoal a pelo menos dar uma mão de tinta, um tratinho básico. Mas que ficou legal, ficou, agora dá pra ver a cidade, por pior que ela seja. Opinião de quem não vive lá, é claro. Pode ser que me mandem praquele lugar. Fiquem à vontade. Kassab no cu dos outros é refresco.

    >>>> Entretanto, como diria Jorge, o Miyashiro, São Paulo também traz um sentimento de premência, de que algo vai acontecer em breve, uma adrenalina jorrando nos tubos preparando corpo e espírito para as mais indômitas aventuras, negócios, paixões. Mas, muitas vezes, nada acontece, é só a sensação, mesmo. Na primeira cagada, isso passa.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Terrestres

  • Sampa mid-day - 1

    Fui duas vezes a São Paulo nos últimos 15 dias. Fiquei mais restrito à Zona Norte, local de nascimento de minha mulher e onde moram seus pais e irmãs. Gostei do que vi.

    > O Parque da Juventude, no local onde antes era o complexo do Carandiru, por exemplo. O parque é legal, amplo, tem bosques, muitas quadras, parquinho pras crianças. E vai ter uma escola (acho que Cefet), um pavilhão de exposições e um teatro. Uma das entradas fica ao lado do metrô Carandiru, mas ele se estende até o lado oposto do quarteirão, na Zaki Narchi.

    Ainda restam a Penitenciária do Estado, o presídio feminino e algumas outras unidades, não sei se vão ficar por ali. Mas o parque fez um rasgo de fora a fora no que antes era aquele complexo taciturno e cruel. Dos famosos pavilhões onde os heróicos pupilos de Tobias de Aguiar fizeram tiro ao alvo em presos rendidos, sobrou apenas um, que foi totalmente reformado e onde será a futura faculdade acima citada.

    Uma atração legal são os muros de vigilância. No meio do parque tem um bosque. No meio desse bosque tem umas estruturas de concreto, que seriam mais um presídio, abandonadas nos anos 90. Com um murão em volta. A mata tomou conta do pedaço. E agora, eles colocaram passarelas entre as estruturas. E escadas para subir nos muros, onde você pode andar pela canaleta de vigilância, apreciando o visual do topo das árvores.

    O parque tá bem vigiado, a segurança parece estar ok. Tem muitas quadras e uma pista de skate. Já ouvi críticas de que as quadras são ocupadas full time pelo povão do Cingapura ali do lado. É, meu bem, mas agora eles têm um local de lazer. Antes, qual era a opção? Nada, necas, nenhuma. E mesmo assim, todos se reúnem no local: os mano deixam que a classe média também se divirta em paz. E assim, todos fazem a vida na megalópole (um pouco) mais agradável. O povo do lado de cá do Tietê bem precisava de um espaço assim.

    >> Outro ponto a se destacar é a avenida Nova. Esse é o nome dado pelos locais à grande via que é uma ramificação da Ataliba Leonel e que vai até o metrô Tucuruvi, passando pela Parada Inglesa. Nunca consigo decorar o nome dessa bagaça, e acho que é por isso que ela ganhou nova denominação. Há coisa de 20 anos era um matão só; hoje, é mais uma efervescente avenida da supercap, sempre para cima, rumo ao desenvolvimento, ao crescimento e ... paremos por aqui. Mas está até legal. Tem alguns botecos transados onde dá pra tomar um chopp e uma cerva olhando o movimento. Tem pub, lanchonetes, farmácias, enfim, toda parafernália para não ter que cruzar as pontes sobre o rio rumo às zonas mais centrais e/ou badaladas. E é até razoável pra dar uma corrida de manhã, à tardinha ou mesmo à noite.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Algum lugar - 2

Pela milésima quinta vez, Jorge me desafia: “Não podemos ficar assim, sem agitar, sem reconhecimento”, “precisamos produzir algo”, me cobra ele. E, mais uma vez, tento me esquivar. Mas ele é japa, já flertou com todas as artes marciais. Seus golpes, se não tão precisos, são certeiros. Inútil resistir. Tento questionar, e ele diz: “sou seu mestre”, e replico, contrariado: “mestre o caralho, você é meu amigo, então me ouça e fique calado”. Mais uma vez a coisa termina assim, com cada um espetando sua espada na terra e abandonando o local da contenda devido a uma grande inundação que vai chegar, prontos para retornar depois e continuar a esgrimia, tudo isso conforme história de Ito Ogami que ele me conta, e que recentemente teve suas histórias republicadas.

Sei lá, de repente uma hora ele acaba conseguindo. Sempre tive espírito caiçara demais pra tocar coisas mais profundamente. Tenho uma queda por me encostar e ficar só na flauta. Se tiver uma rede, melhor ainda. Por isso, sempre precisei de empurrões pras coisas funcionarem. Enfim, o blog teve início. Vamos ver no que dá. Evoeh!

A seguir: “Esconde-esconde com a morte”, uma aventura no Japi

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Algum lugar -1

Estamos em algum lugar esquecido por deus nesta cidade. Jardim dos Pinheiros ou alguma coisa que valha. Uma pizzaria entre Santa Felicidade e minha casa, lá pelos lados da Lamenha - mais especificamente moro em uma ponta de Almirante Tamandaré. É meia-noite de uma quarta-feira de quase inverno. E é de se perguntar por quê dois caras inteligentes, com cultura geral ampla, capacidade de mobilização e espírito crítico acima da média nacional estão perdidos nessa realidade tão árida de idéias, de criatividade e calor humano.

Na verdade pra mim não faz a mínima. Minha pouca capacidade de entoar relacionamentos novos, e mesmo meu autismo particular, me impedem de querer mais do que tenho em termos de relacionamento com a sociedade. Até quero, mas não consigo. O passar dos anos me trouxe uma indulgente auto-complacência, o que me deixa em situação confortável nesse sentido. A suposta experiência adquirida até me faz conseguir alguns colegas de trabalho que, sinceramente, não sei se durarão, mas que me são algo muito grato no momento. Pelo menos tenho tido alguma vida social fora da rotina de casa, família e empregão. Não que tenha do que reclamar. Tenho bons e fiéis amigos, antigos, anteriores, que sei que me amam por natureza e que estão ligados a mim para o que der e vier.

Enfim, deixando a divagação de lado, Jorge Miyashiro pra variar tenta me desafiar, ver se de mim sai alguma coisa parecida com a centelha que um dia houve na faculdade, em Bauru. Nada gay, garanto, o que falo é com relação a idéias, inconformismo, criatividade etcetera e tal. Mas pra mim, hoje em dia tão assoberbado com atividades corretas, comuns e incomensuravelmente cotidianas, nada disso tem sentido. Nem as coisas sistemáticas nem qualquer ação extrapolante, como, por exemplo, escrever um blog, coisa que ele fica me cobrando o tempo todo. Aliás, não só isso, mas o vídeo com os bonecos e algumas outra coisas mais que, confesso, não tive tempo nem saco nem culhão pra fazer por pura preguiça, receio, vergonha ou falta dela.

Voltando ao papo do blog: “Pra quê?”, digo eu. “Pra fazer algo”, diz ele. “Pra quê?”, repito, “Qual é o objetivo disso? Não tem sentido”. “Pra aproveitar esse tempo, gozar as situações, curtir a vida”, diz ele. E eu, irascível, digo que não sou assim, que não vejo motivação em nada e tudo o mais do discurso padrão. E ele, claro, serpente que é, me chacoalha: “isso é viadagem” e várias outras sentenças afiadas pra provar seu ponto de vista. Nesse momento, a oitava cerveja já jorra sua ameaça (sete Serra Maltes no Pic Nic e uma S. na pizzaria, que está quase fechando) e estamos invariavelmente imprestáveis, além de que a Lu liga, e a realidade cai como um peso de chumbo estabilizando um anzol embaixo d’água. O chamado da família.

A seguir: "Algum lugar - 2"