segunda-feira, 6 de junho de 2011

O Abismo



No fim de tudo, na beirada insana do mundo, existe um abismo. Ele não é escuro como deveria, tem laivos de eletricidade, e em seu âmago mentes treinadas, se pudessem chegar perto sem serem afetadas pelas graves consequências desse ato, seriam capazes de vislumbrar um redemoinho de poeira estelar. Diz-se que, quando você o mira, é como se sua vontade fosse totalmente drenada. Os desejos de esvaem, e se por um lado isso pode parecer bom, por outro todas as esperanças também se vão, restando apenas um breve desespero. A força que emana desse buraco é tanta que o tempo também é afetado. Ele se torna elástico, amplia-se, torna-se quase infinito. Um segundo de agonia dura uma vida. Uma migalha de angústia representa uma era completa.
Se houver algum sentido a ser pensado, neste patamar ele já deixou de existir. Até a palavra “sentido” já perdeu seu significado. As memórias felizes são contaminadas pelo vórtice que se assoma à frente, e mesmo essas lembranças passam a não parecer mais tão doces assim.
Prezado viajante: se por acaso você vir ao longe algo que pareça estar drenando seu ser e carregando sua alma sem que você possa influenciar ou evitar esse movimento involuntário, fique atento. O abismo não tem sinalização, não há uma estrada definida para o mesmo. Passantes incautos, quando menos esperam, dão de cara com ele, e então já é tarde. Inexoravelmente ficarão ali por uma eternidade, enfrentando seus monstros e medos, um a um, um após o outro, repetindo-se na batalha enquanto as forças do desavisado ser são devoradas por esse imprevisível e implacável fenômeno da natureza.
Não há registro de armas que possam ser utilizadas contra ele. Todas elas, por mais potentes ou mortais que sejam, servem apenas para alimentar ainda mais o fluxo irresistível de dissabores do fosso, que devolve cada golpe com energia redobrada, quebrando pouco a pouco a resistência do oponente. Há quem diga que nessa esquina poeirenta do universo conhecido toda vida acaba. Ou se paralisa, o que é muito pior.
Há, porém, alguma literatura obscura que nos informa que uma ou outra vez o abismo foi burlado. Um desses episódios está gravado em cristal na biblioteca universal do quadrante setecentos-e-quarenta-e-cinco-ponto-quinhentos-e-cinquenta-e-dois, face cinco-ponto-meia-meia, área duzentos-e-trinta-e-seis-ponto-noventa-e-nove. Relata que determinado ser, não identificado e não catalogado, ao se deparar com o inevitável, após alguma luta inicial, resolve inesperadamente, ao contrário da grande maioria daqueles tragados pelo fluxo energético, se deixar arrebatar pelo mesmo. Dizem os registros, que carecem de fontes fidedignas e que se limitam apenas a descrever o suposto ocorrido, que essa pessoa, após alguns minutos estendidos perpetuamente no esgarçar temporal sobre o qual já falamos, tomou algumas atitudes impensadas até então: aceitou seu destino, arremessou lá dentro sem apego quaisquer ilusões anteriores de sua mente agora sonolenta, esqueceu qualquer esperança vã que ainda pudesse conectá-lo ao beiral e... atirou-se em seu interior sem olhar para trás.
O que se segue é tomado atualmente como apenas mitos, falácias. O que se pode esperar de um acontecimento desse seria não restar nada do referido ser, nem mesmo lembranças nas mentes alheias, visto que, tendo-o como origem de sua existência, seriam arrancadas de quaisquer tecidos cerebrais que porventura as carregassem e seriam engolidas junto com ele, intrinsecamente ligados como o são. Em suma, supõe-se que um evento como esse não deixaria nem memórias de sua vítima, seria como se ela nunca houvesse existido em parte alguma da atual configuração universal. Daí o porquê de as narrativas que advieram deste improvável fato serem classificadas apenas como lendas. Muitas delas sugerem que a pessoa em questão, em vez de sublimar-se completamente, como seria de se esperar, teria, após algum período não mensurado, sido arremetida para fora, totalmente transformada, livre de seu peso existencial e, principalmente e incrivelmente, inteira e sã.
Ainda há quem vá mais longe: há crenças espalhadas de que esse ser ímpar teria saído não por aquela abertura inicial, mas por uma hipotética outra fenda, a milhares de anos-luz de distância e em período de tempo diferente daquele registrado na sua entrada na zona de influência abissal. Mesmo aqui há sugestões díspares, umas de que ele reapareceu no passado e outras de que isso teria ocorrido em algum dos futuros mais prováveis. De qualquer forma, tais fantasias só corroboram que tal indivíduo, se é que existiu, certamente deve ter  apenas e inevitavelmente dividido sua sorte com tantos outros que supostamente chegaram a tal limiar, que é a de por lá ficar por todo o sempre.
De fato, o que se supõe é que as incontáveis mentes capturadas acabam permanecendo no horizonte dessa magnífica estrutura natural, sem forças para dar o passo derradeiro e muito menos para retroceder. O que, por si só, já joga por terra a simples suposição de que algum ser poderia sair com vida de tal experiência, como relatado aqui. Embora seja mister admitir que mesmo esta alegação ainda não pode ser comprovada, visto que, por todo esse panorama apresentado, demonstra-se muito difícil, quiçá impossível, comprovar in loco tal teoria, que, por isso mesmo, ainda permanece apenas com status de hipótese, sujeita, há vários ciclos, a experimentações laboratoriais infelizmente ainda inconclusivas.
Excertos da Enciclopaedia Panuniversalis