segunda-feira, 30 de julho de 2007

Bitte, ein schoppenbier

“Vai lá.”
“Onde?”
”Vai lá pegar um chope.”
“Mas eu já tô com um.”
“Vai lá!”
“Porra, cara, deixa eu terminar esse aqui.”
“Deixa aí. Vai lá e pega mais um. Um não, dois. Vai!”

Não tinha como argumentar. O Zédu é um dos caras mais convincentes desta versão de universo que estamos presenciando. Fui lá pegar mais um, um não, dois chopes. Vim com eles e coloquei na mesa. Zédu fazia contas.“Deixa eu ver... Se em treze minutos eu tomo um chope, e são seis e meia da tarde... Então até as oito dá pra tomar mais uns sete chopes.”

O horário era imprescindível nos cálculos. O local era o bar do Torto, um dos mais míticos de Santos. Devo parte de minha formação como ser humano a esse local pequeno, normalmente lotado até a tampa, sufocante e com música ao vivo de estourar os tímpanos. E torto, é claro, porque fica no térreo de um dos prédios mais inclinados da orla.

Naquele momento não estava lotado nem apertado. Aliás, estava muito vazio: tinha só umas dez pessoas, incluindo eu, o Zédu, o Walter e o André. E o som era maneiríssimo e pianinho: um quinteto de choro. Era fim de tarde, mas como o local era praticamente todo fechado, mal se notava que o dia ainda lutava inutilmente contra a noite que vinha.

Era sexta, dia de rodízio de chope das seis às oito, ou coisa que o valha. Preço único e não pagava couvert. Depois disso é que vinha o roquenrol. E nós, claro, queríamos ver como era a coisa, aproveitar pra entrar na nigth calibrados sem gastar muito.

Zé, consciencioso de sua missão nesta terra, não deixava a peteca cair. No auge de seu delírio schoppenbieriano, nos fazia largar as tulipas na mesa e comandava mais um ataque ao tirador. Era um verdadeiro general, traçando metas e estratégias, sincronizando relógios para o gran finale. Como bons soldados rasos que éramos, obedecíamos, mesmo sem saber quais seriam as vantagens e objetivos da empreitada. Mas creio que, em vez de conseguir apenas umas doses na faixa até a hora em que o rodízio terminasse e começasse o agito, os planos se estenderam para garantir um suprimento de beberagem que atravessasse a noite, não tendo que gastar mais um tostão que fosse. Ele comandava: “Isso, agora deixa esse aqui e vai pegar mais um”. “Você”, apontava para outro de nós, que subitamente estacava meio receoso da ordem que iria vir. “Espera ele voltar e traz mais dois”, sentenciava.

A mesa ia ficando repleta de copos com chopes em vários níveis. Um visual incrível. Íamos tentando tomar rapidamente, mas, supostamente alimentado com informações privilegiadas da vanguarda, a voz de comando indefectível do incrível Zé era mais ágil, e tínhamos que ir ao front novamente trazer mais amostras do precioso líquido.

Assim foi. Quando finalmente o barraco começou a esquentar, chegando o pessoal da noite, as minas, os músicos e tudo o mais, já era tarde. Exaustos pelo ir e vir, e frente a uma mesa que estava totalmente tomada de chopes meio bebidos e inteiramente quentes, nós já estávamos em estado de neurose de guerra. Um, perdido no banheiro minúsculo. Esse acho que era eu. Outro, vomitando embaixo da escada. Mais um, desaparecido em combate, talvez tentando encontrar o rumo de casa pela beira da praia. “Casa? Eu tenho uma casa? Aliás, quem sou eu?”, provavelmente se questionava essa pobre alma em confusão.

A coisa seguiu assim, melancolicamente, com a noite terminando mais cedo e nós imprestáveis antes das dez horas. Mesmo assim, tentamos novamente numa outra sexta. Mas demos com a cara na porta, ou melhor, no balcão. Quando fomos iniciar toda a patuscada de novo, indo pedir chopes em cima de chopes ao barman, ele nos negou. “Nananina. Eu vi o que fizeram na outra vez. Agora, só dou um chope quando me devolverem o copo vazio do outro.”
Esperto, muito esperto.

A seguir: "Consórcio da cerveja"

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Terrestres

  • Fabulinha do desastre

> Olha só aquele careca com fundos olhos marcados. Ele olha pros escombros e diz: que tragédia, nunca vi nada igual!

Se é que disse mesmo. Tá no jornalão. Tá na tevezona. Tá na semanal. Então deve ter falado, os meios nunca mentem a mensagem. Ele se esmera em sua pose e diz: Queremos providências! Queremos os culpados!

Que fleuma, quanta objetividade, é um verdadeiro líder!, assomam comunicadores em sua inimitável e irrefreável lida diária.

Choram mães e filhos, a eles não se pode negar total e irrestrito direito. Dor impassível e irreconhecível por quem está de fora. Esses devem ser sagrados com o respeitoso silêncio.

Mas aquele senhor, o de careca pronunciada e olhar sombrio, aquele mesmo, amigo do outro médico narigudo e de oclinhos. Esses amigos, há bem pouco tempo, deixaram uma rebelião assomar-se diante dos portões dos bandeirantes. Como patinhos de jogo de tiro em parque de diversões, policiais desavisados foram caindo um a um. Assim, sem mais.

E depois, aquele senhor, junto com o colega burguesinho e o outro velho quase careca metido a filósofo de carteirinha que acabou tenho o rojão estourado na mão, esses mesmos, deixaram que a polícia – aquela, paulista, boazinha, cheia de escrúpulos – saísse vingando as dores ao bel prazer, assassinando indiscriminadamente quem viam pela frente.

Sem derrubar um único avião, esses caras causaram e causam mais mortes que qualquer irresponsável acidente como o recente. Mas é claro, não falemos disso. Jornalões e tevezonas também têm mais o que fazer além de remoer fatos velhos, o que passou, passou. E, afinal, aqueles presuntos – população em geral e policiais inclusos – eram pobres, de onde vieram tem muito mais, então pra quê tanta celeuma?

É por isso que o nobre líder da locomotiva sem freios do país agora se debruça oportunamente sobre as vítimas e diz, conforme os jornalões e tevezonas: Que desgraça! Queremos os responsáveis!

Vai que é tua, meu garoto, que um dia você será presidente, disse a ele um padrinho, pegando-o no colinho e lhe dando um caramelo superfaturado. Brigado, tiuê, quando eu crescer eu também quero ser qui nem u sinhô, ter televisão, jornal e um monte de deputado no bolso, disse o petiz, saindo, serelepe e feliz, pelas belas margens do Tietê.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 8

Sistema último de saúde

Eu, grogue feito o quê, dando entrada num posto de saúde de última categoria numa cidade paupérrima. Dá pra adivinhar o esquemão. Uns dois gatos pingados atendendo. Apenas alguns infelizes esperando, a madrugada até que tava boa. Depois da espera de praxe – afinal, eu só tinha voado de um carro num capotamento, pra quê a pressa? – entrei numa sala em que um cara, duvido que fosse médico, me atendeu. Fez umas perguntas, deu uma olhada geral, tirou pressão, ouviu os batimentos. Por sorte ou fortuna, aparentemente só tive arranhões. O cara, sem a mínima vontade de trabalhar, queria me dispensar: Tá liberado.

Não estava no meu melhor, mas mesmo assim eu conseguia pensar no mínimo que qualquer um nessa situação pensaria. Mas como assim? Eu sofri um acidente. Capotei, me esborrachei no asfalto. Você não vai tirar nem uma chapa da minha cabeça? Não, disse o cara, não precisa. Eu encrenquei: Queísso? E se eu saio daqui e pimba, me dá um treco? Precisa de um raio-X pelo menos. O cara, nada, tentando se livrar da incumbência e do gasto: Não precisa. E eu: Precisa. Ele: Não precisa. Eu: Precisa. Até que ele concordou, só que me ferrou pra ter um gostinho: Mas se tirar chapa, tem que ficar aqui em observação. Fazer o quê, aceitei. Fizemos o raio-X e depois fui para um quarto. Tinha umas seis camas, só uma ocupada. Deitei, e o Flávio falou que ia embora e mais tarde vinha me buscar. Apaguei, dormi sem sonhos, um alívio naquela altura do campeonato.

Já quase perto do meio-dia, acordo. O local tava cheio, todas as camas lotadas, gente gemendo, gente passando pra cima e pra baixo pelo corredor, maior confusão. Pelo jeito o domingão era dia de ziriguidum no postinho. Ao meu lado, uma senhora reclamava de dor. No outro canto, um daqueles especialistas que sempre estão por perto, um senhor, também deitado, dava seus pitacos: Ih, isso aí eu sei o que é. Dor no abdômen. Um conhecido uma vez teve isso e morreu logo depois, não deu tempo nem de socorrer. E ficar aqui internado é ainda pior. Um primo meu entrou bonzinho e logo depois morreu de infecção hospitalar. Legal, tio, era o que eu tava precisando. Mais uma vez, eu ia vagarosamente em direção à consciência total.

De repente, entram o Flávio com dois de seus irmãos e uma cunhada. Tinham ido me buscar. Me viram e racharam o bico. Muito engraçado. E aí, vamos embora? A muito custo, conseguiram levar uma enfermeira pro quarto. Ih, pra ir embora tem que esperar o médico pra ele dar alta. Cadê o gajo? Só depois das duas da tarde. Era quase meio-dia e eu realmente não tinha intenção de ficar ali um minuto mais. Levantei, tirei o camisolão, achei minhas calças e saímos fora.

Não fomos longe: paramos num buteco logo em frente. Sentei. Olhei o dia: nublado, feio. Respirei. E finalmente pude pedir com toda a calma possível: Uma cerveja, pelamor!

A seguir: “Bitte, ein schoppenbier”

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Terrestres (quase aéreas)

  • Direto e reto

> Mais um acidente. E 200 almas queimam até não sobrar nada. O país é essa incompetência. Quem faz a pista, faz meia boca. Quem tem que treinar os pilotos treina meia boca. Quem tem que organizar a zona, faz meia boca. Quem tem que atender decentemente o público, meia-boca. E tudo porque tá todo mundo é a fim de embolsar o seu salarinho de merda, seus dez por cento, seu lucro empresarial e que se lasque o resto. Pra quê pensar no outro?, é um desconhecido, mesmo. E assim vamos nos desconectando de tudo.

>> Fora a sensação de transitoriedade que sempre fica. Ver aquela bola de fogo consumindo instantaneamente tudo é meio apocalíptico, impressiona. Tá vivo, tá morto. Assim, de repente. Viver é isso. Como diz o Joca, a vida é uma doença de nascença. Tudo bem que deus é um fdp por criar essa coisa meia-boca também. Mas a gente poderia tentar se ajudar um pouco.

>>> E as TVs resfolegando em cima, fazendo conjecturas, derrapou, molhou, apagão etc. e tal. Que pena, né? Acabou (um pouco) com o ufanismo escroto do pan pan pan pan. Já que vamos começar a falar de merdas do sistema aéreo, que tal também aproveitar para falar de irregularidades do pan pan pan pan? Do monte de grana gasto à toa. Das suspeitíssimas ações do COB e seus apadrinhamentos? Ah, não, deixa pra lá., vai estragar a festa, cara chato, pô!

>>>> Já no primeiro anúncio da merda, eu achava que o cara tinha entrado fudidamente, não dava realmente pra dar aquela porrada do jeito que foi se ele não estivesse a toda velocidade e sem conseguir frear: ou deu pau no sistema de freios e rodas. Ou nos flaps. Ou no psicológico dos pilotos. Ou tudo isso junto.

>>>>> Óbvio na cara: Congonhas já deu. É antigo, parece uma rodoviária. Precisa se tornar aeroporto de baixo tráfego. Mas quem tá interessado nisso? As companhias aéreas? Os governos? Os executivões da Berrini, ali ao lado? Claro que ninguém. Enfim, vamos para o próximo tópico.

>>>>>> Pois não, senhor? Quer janela ou corredor? Gol ou TAM? Queda livre ou tentativa frustrada de aterrissagem?

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 7

Vôo de galinha

Fomos embora. Pegamos a avenida pra Várzea Paulista, um horror de cidade. Íamos aliviados por tudo ter acabado. Pessoalmente, eu estava apreensivo com meu futuro por ali. Primeiro porque, com certeza, um dia eu iria cruzar novamente os três imbecis armados. Depois porque, se com uma semana na região eu já estava entrando em uma lama dessas, não queria ver como seria depois de algum tempo a mais de casa. Mas, no fim, o alívio momentâneo já era suficiente. Entramos na cidade, passamos em frente ao pronto-socorro e seguimos no caminho para o sítio. E tudo apagou.

Acordei com dois PMs falando comigo. Da escuridão, fui me aproximando de algo consciente. Primeiro, ouvi vozes, mas sem sacar o significado. Abri os olhos. Vi o rosto gigante de um dos PMs, que estava agachado, debruçado sobre meu rosto. Minha visão estava se readaptando, e o que eu via lembrava o a filtragem por uma grande angular. Daí que a cara do policial estava totalmente desproporcional ao resto do corpo. Ele começou a falar comigo. Seu nome? Consegue sentir os pés? Tenta mexer. Consegue sentir as mãos? Mexe aí. Consegue mexer o pescoço? Fizeram tudo como manda o figurino. Felizmente eu conseguia me mexer sem problemas. Notei que eu tava estirado, atravessado na rua, próximo ao meio-fio. Ao meu lado, a traseira do mastodonte verde. Não entendi nada. Os PMs tavam putos. Quase prenderam o Flávio. Eu, perdidaço, dando braçadas em uma piscina de gelatina rumo à consciência.

O que ocorreu é que aqueles gemidos que o jipão tava fazendo desde a tarde era algo bem mais grave que a gente supunha. O eixo das rodas traseiras travou, o carro deu uma guinada e capotou. Bateu no chão uma vez de rodas pra cima e caiu em pé de novo. Eu voei longe, desta vez mais longe ainda que na lanchonete. Tava virando mania. O Flávio, segurando na direção, conseguiu se manter sentado. O que o salvou de ser esmagado quando o jipe bateu de cabeça pra baixo foi o enorme pneu estepe que ficava preso na traseira e o quadro do pára-brisa. Os dois amorteceram a queda, fazendo o papel do santo antônio inexistente.

O Flávio ficou consciente, só cortou o supercílio. Ele conseguiu arrastar o jipe pra perto do meio fio, mais à frente do lugar onde eu estava desmaiado. Saiu correndo e chegou esbaforido ao pronto-socorro por onde acabáramos de passar. Foi pedir ajuda a um carro da PM estacionado. Os policiais desceram a lenha: O quê? Cê tá brincando! Só pode ser brincadeira! São cinco pras cinco da matina. Daqui a cinco minutos a gente vai largar o batente, e você chega aqui dizendo que capotou um jipe? E o pior, que tem vítima? Foi com esse espírito de servir e proteger que os valorosos homens da lei foram lá ver o que tinha acontecido. Quando chegaram, viram o jipe parado e eu estiradão na rua um pouco atrás dele. Engrossaram com o Flávio. Achavam que ele tava inventando: Você atropelou esse cara, tá doidão? Vai ser preso agora mesmo! E o Flávio, de alguma forma, mesmo naquela confusão física e mental, conseguiu chamar os caras pra real. Explicou o que tinha acontecido. Mas continuavam mordidos. Eles teriam que nos atender, fazer ocorrência etc. e tal, o que acabaria de vez com sua cervejinha de final de turno, que, aliás, eles já estavam tomando bem antes de a gente aparecer, a julgar pelo bafo e pelo jeito de falar.

Quando fizeram todos os testes e viram que eu estava praticamente inteiro, me mandaram levantar. Fomos até o pronto-socorro. O jipe ainda andava de forma precária, e o Flávio conseguiu levá-lo até o estacionamento. Entrei. Cidade capenga, pobre, posto sob responsabilidade de plantonistas. O atendimento seria de primeira, como dava pra imaginar.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 8 – Sistema último de saúde"

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 6

Amigos visíveis

Bom, eu tava encurralado no fundo do bar pensando como escapar inteiro daquela situação. Imaginava um jeito de sair dali sem ser depenado pelos três meganhas frustrados – porque era o que eram, caras que adoravam andar e trocar figurinhas com a polícia, se é que me entendem. Fiquei ao lado de uma mesa que tinha um povo legal, uns dois caras e duas garotas. Uma delas fala: Fica aqui atrás, ninguém vai te encontrar. Gente boa mesmo esse pessoal, me deram proteção.

Lá na frente, o auê ainda estava rolando, eu não podia saber o que acontecia porque não queria dar as caras. Sei que tava um agito e, de repente, o Flávio irrompe do meio do povo: Fica aí, cara. O Ferpão quer o teu couro. Eu vou lá fora falar com eles. Não, cara, não vai não, eles vão te bater. Minhas súplicas foram em vão, e ele insistiu. Eu conheço os figuras, não esquenta. Eu, querendo agora dar uma de machinho, bravateando: Então vou contigo. Flavião não deixou. Não. Fica aqui. No que mostrei que ia insistir em ir com ele, uma das garotas que estava na mesa – uma negra, não muito alta, mas gordinha, rechonchuda mesmo, e forte pra caramba - se manifestou pro Flávio: Pode deixar, ele vai ficar te esperando aqui. E me agarrou por trás, segurando meus braços fechando firmemente suas mãos na minha frente e evitando que eu me movimentasse. Ela era forte, depois fui saber que era policial militar de baixíssimo escalão, talvez soldada rasa. Viu? Nem tudo está perdido.

Aguardei naquele abraço da mamãe ursa, de vez em quando pedindo pra ela me soltar. Não, vamos esperar. Então tá. Esperamos. Depois de uns quinze minutos naquela situação ridícula, com ela me encoxando, volta o Flávio: Tá tudo certo, falei com eles. O dono do bar também foi lá ameaçou chamar a polícia e fazer maior auê. Eles foram embora, mas é melhor esperar um tempo pra eles desistirem de vez.

Beleza. Virei pra minha protetora. Viu? A barra tá limpa, pode me soltar. Ela sorriu matreiramente. Ahhh, já? Me agraciou com um belo sorriso e me soltou. Agradeci aos meus benfeitores e resolvi tentar relaxar. Desta vez, de verdade. Fui procurar algo pra beber. Eu não me sentia real, toda aquela bruma e essa história maluca – sem falar a cachaça – tinham me deixado entorpecido. Tanto que não vi pra onde o Flávio tinha ido. Ah, que se dane. Voltei a dançar pra tentar tirar toda ziquizira no suor.

Como que pra finalizar em grande estilo, lá pelas tantas encontro o Flávio sentado numa mesa. Os dedos da mão direita, vermelhos e inchados, enfiados em um copo com gelo. Perguntei o que tinha acontecido. Ele, que também tava meio zonzo como eu, falava alguma coisa sem nexo. Naquele som alto, eu não entendia lhufas. Olhei os dedos detonados dele e fiquei puto. Porra! Os caras te machucaram, né? Caralho, que foda. Eu sabia, cara, você não devia ter ido lá falar com eles. Esses caras são uns animais. E o Flávio: Não, não é nada disso. Acontece que ele também resolveu dançar, relaxar, pular, suar e mandar tudo pra pqp. Se empolgou demais no bailado e enfiou a mão num ventilador de parede. Pode parar. Pra mim chegava. A conta, por favor.

Resolvemos ir embora pra tranquilidade do sítio, descansar, dormir, esquecer. Já era alta madrugada. O domingão já tinha chegado sorrateiramente e seria ideal para ficar bundando o dia todo, curando as feridas em um lugar pacato e silencioso. A longa noite de ameaças e sustos finalmente tinha terminado.

E foi aí que capotamos o jipe.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 7 – Vôo de galinha"

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 5

Doce ilusão

Depois da confusão na lanchonete, tentando retomar o fio da meada, me acalmar e não me mijar, fomos pra cidade. Rodamos na noite e paramos na frente de um bar, que me escapa o nome agora. Era rústico, mas recomendado. Era fechado, tinha que pegar ficha e tinha couvert. Naquele momento, parecia um abrigo. O grupo que ia tocar era conhecido, os caras sempre iam ao jornal. MPB pop era a especialidade, som dançável. Entramos. Apesar do som alto e de estar lotado, escuro e esfumaçado, a adrenalina começou a descer. Tava seguro, gente nova, mulherada, e, principalmente, cerveja, que era tudo que a gente tava precisando. Começamos a descontrair, finalmente. E dançamos muito, tomando umas e já esquecendo as agruras anteriores. O ambiente cheio e escuro parecia dar proteção e arriscávamos até umas azarações.

Não me lembro quanto tempo fiquei naquele relax todo. Foi o suficiente para esquecer o que houvera. Mas, pra variar, a coisa nunca é tão simples. O cara que me apontou a arma, o tal amigo do gorila, de repente tava ali, do meu lado. Eu pulando, suando que nem um cavalo acompanhando o som, as luzes colorindo tudo, e o cara, como uma aparição, ali, me olhando. Quando me dei conta, estaquei. O cara tava vestido todo de preto. Camisa meio social, calça preta agarrada também, os caras gostavam da coisa. Parecia saído de algum rodeio. Só não vi se tava de botas. Que porra, pra quê pensar em botas nessa hora? A coisa ia feder de novo. Não deu outra.

O cara chegou de lado, pegou meu braço, me puxou e falou no meu ouvido: Vamos lá fora conversar. Conversar? Conversar o quê? Não vou não. O cara achava que eu era otário. Soltei meu braço e fiz menção de sair andando. Ele pegou de novo: Vamos lá fora. Pra quê? O Ferpão quer falar contigo. Só faltava essa. Me desvencilhei mais uma vez: Cai fora, eu não vou. É melhor vir, ele quer bater um lero contigo. Eu começava a ficar meio preocupado de novo. Ele que venha aqui dentro, a distância é a mesma. O capanguinha cowboy ficou meio confuso. Não era sempre que tinha que usar tanto raciocínio, o hardware e o software estavam obsoletos havia eras.

Quando percebeu que eu tava vazando, veio e apelou pra força. É melhor vir por bem! Não, cara, eu não vou! Eu resistia, o pessoal dançando em volta começava a sacar que tava rolando um barraco. Se afastavam e pude trocar bons passos de dança com meu par predileto da noite. Quando ele sacou que não ia conseguir me arrastar, levantou a camisa e mostrou a pistola na cintura. Se você não vier por bem, vai por mal! E sacou a arma, mas manteve apontada pro chão, meio mocozada.

(Nesse momento, um parêntese. Tenho que agradecer a todos os meus mestres e professores de capoeira. Que me ensinaram essa nobre arte. Todas as formas de movimentos no ar, em pé ou mesmo caído no chão. A arte da queda e da enganação. A verdadeira ginga. Porque só mesmo isso me deu a desenvoltura, a presença de espírito e a criatividade para aplicar tão infalível golpe naquele momento: dar no pé.)

No que ele levantou a mão pra tentar me pegar de novo, eu tava muito perto dele. Como ele se movimentou bruscamente, esbarrou em mim e aproveitei a deixa. Pra evitar ter que tomar porrada de novo, me adiantei. Fingi que tinha tomado um chega pra lá e caí em cima da multidão em volta, fazendo todo o estardalhaço possível. Abriu-se imediatamente uma clareira em volta do cara, todos falando Ohhhhh! e se voltando pra ele. Constrangido, o cuzão escondeu a arma de novo. Eu já tinha saído fora agachado, mimetizado entre as pernas de centenas de pessoas. Fui correndo até o fundo do bar. Mas não ia adiantar. Não tinha saída. Eu não sabia o que fazer. Tive a sensação de que alguma coisa não ia bem, de novo.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 6 – Amigos visíveis"

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 4

Hambúrguer com bifas

Tava lascando as primeiras mordidas no sanduíche, laricado. Vem um carro, estaciona na frente da lanchonete, ao lado do jipe. Três caras descem. São marombados. Esquisitos. Um deles é grande paca. Loirão, cheio de cachos. Calça jeans agarrada, jaqueta jeans. É a gangue local. Flávio os conhece, cresceu trombando com os tipos. Dois deles o cumprimentam no bar. O grandão parecia meio alterado, mas mesmo assim, estava dono de si. Senta-se na minha mesa. Na minha frente. Olhando fixamente pra mim. Eu lá comendo o sanduba. Que merda, eu tinha um talento da porra pra atrair confusão. Lá vamos nós, pensei eu, em minha imponderada arrogância. Fiquei ali, fingindo que nada tava acontecendo. O cara encarando. Era grande mesmo. Fudeu.

Acho que eu não tava na terceira mordida quando o cara falou. Até então ele tava encostado na cadeira, de braços cruzados, mas se debruça em minha direção e manda: Esse teu cabelo aí é de viado, né mesmo? Na época, eu tinha cabelo. E tava grande. Há momentos cruciais nos quais nos perguntamos por quê exatamente achamos que a humanidade é algo mais que uma ameba. A minha atitude naquela hora, que eu nutria muito frequentemente em diversas ocasiões, me fez viver vários desses momentos sofríveis. Esse era um deles. Em terra estranha, sem casa, sem grana, uma noite fria, uma cidade obscura. O que mais eu poderia fazer?

Olhei fixamente para ele e devolvi: Eu não acho que um ser ignorante como você pode entender. O cara ficou vesgo de surpresa. Antes que eu desse a primeira respirada depois da última palavra, levei um tapão na orelha direita e voei longe. Cadeira, mesa e sanduba pro chão. Flávio, que tava conversando com os camaradas do cara, veio correndo. Vieram todos. Os três agarraram o animal, que vinha me pegar, berrando. Pra mostrar que eu não era de brincadeira (só pode ser brincadeira…), achei que tudo tava fudido mesmo (eu tava enganado, ainda não era aí), levantei num pulo e comecei a provocar: Filho da puta! Viado! Vem, vem! O perfeito idiota. O cara urrava e os três tentavam contê-lo. Ferpão, ô Ferpão, pára com isso! Era o Flávio falando com o cara. Ferpão. Putaquepariu, o cara se chamava Ferpão, que bosta. Eu ainda desafiando, um dos amigos dele vem e tenta me conter, me agarra pelo colarinho: Fica quieto! Eu não, quem o cara pensa que é? Fica quieto! Foi me empurrando pra calçada até eu ficar encostado no mastodonte verde. Fica quieto! Não fico! Fica, que eu sou polícia.

Mais uma vez, mandei tudo pras picas, então era agora que tava tudo fudido mesmo. Grande merda, vai fazer o quê, me prender? Calaboca! Não calo! E o cara saca da cintura uma pistola e coloca na minha testa. Calaboca! Nesse ponto eu juro que achava mesmo que tava tudo fudido. Mandei às favas a porra do universo alternativo e todas as porras alternativas que ele tinha me reservado. Berrei com toda raiva, muito provavelmente seria a última vez: Vai atirar, é? Então faz de uma vez! Nisso o Flávio chega correndo, afasta o cara. Guarda isso, o que você tá fazendo? Que infantilidade, pô! Sai fora, já pensou no que você tá fazendo? Tá maluco? O cara hesitou. Algumas pessoas já iam meio que chegando, assistindo ao deprimente espetáculo. O sujeito recuou pro seu grupinho. Flávio me mandou entrar no jipe e saímos queimando o chão. Flávio, puto: Porra! Que merda é essa? O que você tava pensando? Eu não ouvia nada, chorava pra caralho. Merda total. Mas tava tudo ok. Seguimos pra cidade. Tentar baixar a adrenalina, relaxar, esquecer. A noite prometia!

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 5 – Doce ilusão"

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 3

O terceiro selo

Nossa contemplação noturna no alto do Japi foi subitamente interrompida por algo estranho. De repente, do nada, em plena noite límpida, veio uma neblina que rapidamente cobriu tudo. Não conseguíamos ver um palmo à frente. Acendemos os faróis do jipe, e o cenário iluminado do velho observatório todo carcomido por ferrugem com aquela fumaça em volta me trouxe uma sensação esquisita. Meio que um nó no estômago, uma ansiedade inesperada.

Até então estávamos animados, falando das novidades que estávamos implantando no jornal. O súbito fog nos fez calar. O frio aumentou, me sentia dentro de uma caixa cheia de gelo seco. Olhávamos para o nada no abismo escuro meio esbranquiçado onde antes havia uma cidade inteira.

Sem mais, de repente, a espessa neblina se foi fantasmagoricamente como havia chegado. Em coisa de minutos a vista era cristalina novamente. Voltamos a ver Junds iluminada lá embaixo. Parecia a mesma cidade. Mas lembro de ter pensado que havia algo diferente, brinquei com possibilidade de física quântica e mais além, como se realmente a teoria que especula sobre os universos múltiplos fosse aplicada na prática. Partimos de um deles e aterrissamos em outro. A nossos olhos, tudo como sempre, ninguém diria que é outro mundo, outra consciência, outro universo. Mais um sinal ignorado. O terceiro selo do envelope do destino sendo aberto trazendo maus presságios.

Resolvemos descer. Tá batendo uma fome. Pois é. Subimos no jipe e fomos embora. O jipe tinha uma precária capota de couro. E não tinha santo antônio nem nada. E maior frio. A descida foi bem pior que a subida. Era pra ser uma estrada. Mas com a preservação ambiental do local, tinha virado uma trilha. Uma buraqueira só. Pelo menos pra baixo é difícil ficar encalhado. Conseguimos sem muitos sustos.

Sábado frio, a cidade estranha. Era novo ali, me incomodava. Fomos até uma lanchonete conhecida na 9 de julho, uma avenidona. Mas o local em volta era meio deserto. A lanchonete ali, nenum movimento por perto. Era um casebre, abertão para a rua, balcãozinho lá no fundo. Simplão. A gente ia se preparar pra ir ouvir um som ao vivo em outro canto. A cachaça fumegando na veia. Sentei numa mesinha no abrigo da frente. Flávio foi dar oi pro dono, era local, estava meio que voltando, conhecia muita gente. Olhei o cardápio, pedimos cerveja. Chamei um sanduba. Esperei.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 4 – Hambúrguer com bifas"

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 2

O gemido do mastodonte

Ao sair da mecânica, sol beleza e calorzinho em meio a um frio mês de junho, fomos, é claro, tomar umas no mercado municipal, acompanhadas do famoso bolinho de bacalhau local. Umas e outras e tudo o mais, emendamos com a noite, quando o frio começou a apertar. O jipão 4 x 4 andando, mas fazendo um ruído esquisito, nada a ver com o acelerador e sua companheira gambiarra. Paramos, demos uma olhada por baixo, nada aparente. E o carro continuava a rodar sem problemas. O que será isso? Sei lá, tá andando na boa, deixa pra lá, vambora. Segundo aviso ignorado, fomos em frente. O mastodonte verde, notando ou não que seus gemidos não surtiam efeito, resignou-se a eventuais reclamações, ignoradas solenemente por seus infames ocupantes.

Inventamos de subir a Serra do Japi, belíssimo e raro trecho de mata atlântica encravado em um enorme maciço de cristal. Antes, no caminho, já meio rural, paramos em uma casa onde um senhor vendia cachaça artesanal. Compramos um litrão e fomos dando talagadas enquanto trilhávamos o cada vez mais esburacado percurso. Depois de um razoável tempo e algumas dificuldades, chegamos em um pico. No local tinha um antigo observatório astronômico abandonado – obra, se não me engano, do saudoso Kiko de Mattei, visionário amalucado mezzo ambientalista que sempre dava vazão aos seus sonhos, nem sempre bem compreendidos.

Estamos lá, entornando o caldo, o frio batendo, e temos uma visão privilegiada da cidade iluminada lá embaixo. O céu limpo, totalmente transparente, ajudava a fazer o retrato mais bonito ainda. Tava tudo muito bom. Bom demais pra dizer a verdade. Eu tinha acabado de conseguir emprego depois de pastar meses em São Paulo sem porra nenhuma. Tava conhecendo pessoas, grandes amigos, novas garotas, deixando pra trás agruras amorosas. Realmente, era um momento especial.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 3 - O terceiro selo"