quarta-feira, 18 de julho de 2007

Esconde-esconde com a morte 7

Vôo de galinha

Fomos embora. Pegamos a avenida pra Várzea Paulista, um horror de cidade. Íamos aliviados por tudo ter acabado. Pessoalmente, eu estava apreensivo com meu futuro por ali. Primeiro porque, com certeza, um dia eu iria cruzar novamente os três imbecis armados. Depois porque, se com uma semana na região eu já estava entrando em uma lama dessas, não queria ver como seria depois de algum tempo a mais de casa. Mas, no fim, o alívio momentâneo já era suficiente. Entramos na cidade, passamos em frente ao pronto-socorro e seguimos no caminho para o sítio. E tudo apagou.

Acordei com dois PMs falando comigo. Da escuridão, fui me aproximando de algo consciente. Primeiro, ouvi vozes, mas sem sacar o significado. Abri os olhos. Vi o rosto gigante de um dos PMs, que estava agachado, debruçado sobre meu rosto. Minha visão estava se readaptando, e o que eu via lembrava o a filtragem por uma grande angular. Daí que a cara do policial estava totalmente desproporcional ao resto do corpo. Ele começou a falar comigo. Seu nome? Consegue sentir os pés? Tenta mexer. Consegue sentir as mãos? Mexe aí. Consegue mexer o pescoço? Fizeram tudo como manda o figurino. Felizmente eu conseguia me mexer sem problemas. Notei que eu tava estirado, atravessado na rua, próximo ao meio-fio. Ao meu lado, a traseira do mastodonte verde. Não entendi nada. Os PMs tavam putos. Quase prenderam o Flávio. Eu, perdidaço, dando braçadas em uma piscina de gelatina rumo à consciência.

O que ocorreu é que aqueles gemidos que o jipão tava fazendo desde a tarde era algo bem mais grave que a gente supunha. O eixo das rodas traseiras travou, o carro deu uma guinada e capotou. Bateu no chão uma vez de rodas pra cima e caiu em pé de novo. Eu voei longe, desta vez mais longe ainda que na lanchonete. Tava virando mania. O Flávio, segurando na direção, conseguiu se manter sentado. O que o salvou de ser esmagado quando o jipe bateu de cabeça pra baixo foi o enorme pneu estepe que ficava preso na traseira e o quadro do pára-brisa. Os dois amorteceram a queda, fazendo o papel do santo antônio inexistente.

O Flávio ficou consciente, só cortou o supercílio. Ele conseguiu arrastar o jipe pra perto do meio fio, mais à frente do lugar onde eu estava desmaiado. Saiu correndo e chegou esbaforido ao pronto-socorro por onde acabáramos de passar. Foi pedir ajuda a um carro da PM estacionado. Os policiais desceram a lenha: O quê? Cê tá brincando! Só pode ser brincadeira! São cinco pras cinco da matina. Daqui a cinco minutos a gente vai largar o batente, e você chega aqui dizendo que capotou um jipe? E o pior, que tem vítima? Foi com esse espírito de servir e proteger que os valorosos homens da lei foram lá ver o que tinha acontecido. Quando chegaram, viram o jipe parado e eu estiradão na rua um pouco atrás dele. Engrossaram com o Flávio. Achavam que ele tava inventando: Você atropelou esse cara, tá doidão? Vai ser preso agora mesmo! E o Flávio, de alguma forma, mesmo naquela confusão física e mental, conseguiu chamar os caras pra real. Explicou o que tinha acontecido. Mas continuavam mordidos. Eles teriam que nos atender, fazer ocorrência etc. e tal, o que acabaria de vez com sua cervejinha de final de turno, que, aliás, eles já estavam tomando bem antes de a gente aparecer, a julgar pelo bafo e pelo jeito de falar.

Quando fizeram todos os testes e viram que eu estava praticamente inteiro, me mandaram levantar. Fomos até o pronto-socorro. O jipe ainda andava de forma precária, e o Flávio conseguiu levá-lo até o estacionamento. Entrei. Cidade capenga, pobre, posto sob responsabilidade de plantonistas. O atendimento seria de primeira, como dava pra imaginar.

A seguir: "Esconde-esconde com a morte 8 – Sistema último de saúde"

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