segunda-feira, 19 de maio de 2008

Passagens

O homem levanta a poeira e no vento espalha o cadáver. Este se manda pro leste fingindo ir para o sul. Ao soltar os balões, o cretino do padre deu a mão a netuno, ou talvez ao curupira, que ao ver tal massa de carne disforme, concedeu: que tuas mãos limpas sirvam de aperitivo aos besouros e aos vórtices de moscas varejeiras. No ínterim, no porto sul, um barco de nenhuma vela e um único convés mal-cheiroso partia enquanto seu comandante e seus três únicos asseclas desejavam evitar o breu que se aproximava.

Na sala de visitas de dona Carminha, no decorrer daquela noite, a novena chegava com um grupo lamentoso, e ela, tão desejosa de provar sua fé, colocara o menino nu numa pequena manjedoura e preparara limonada gelada para todos os passantes. Na capital, atrás do balcão de um dos únicos postos 24 horas da cidade, Firmino, negão cabeludo e serião, homem de confiança do local, há anos escolado com a fauna das imediações, olhava a ponta de uma pistola mal ajambrada nas mãos de um moleque branquelo, ladeado por dois desajeitados colegas. A pressão no gatilho ia se tornando mais forte enquanto Firmino disparava com seu vozeirão ameaças aos bandidinhos, que logo se viram em expressão de puro horror quando o gatilho foi acionado e a arma falhou, ao mesmo tempo em que um sorriso diabólico se estampava no rosto do negão.

Nas barrancas do Iguaçu, ao longe o operário vislumbrava o céu em busca de luzes, e assim que percebeu o balão de são joão cair em uma parábola imperfeita, não teve tempo de nada além de pegar sua longa vara de bambu e subir desabaladamente as escadas em caracol intermináveis que rodeavam o grande tanque de crude para tentar evitar o pior. Não muito longe, em um motel quase barato, mas familiar, Ziberline explorava os mais recônditos cantos entre as coxas de sua antiga e somente agora conquistada amada, fazendo-a gemer e pedir por mais e mais e gritar obscenidades cada vez mais chulas, o que trazia a ele a plena satisfação de perceber que pelo menos alguma coisa na vida ele aprendera a fazer direito.

Quatrocentos quilômetros ao norte, sob as mesmas estrelas, estava Amanda, solitária em seu minúsculo quintal de periferia abarrotado de varais repletos de roupas lavadas, que disputavam espaço com restos de materiais de construção sobrados da obra não terminada de sua casa de dois cômodos, sem contar o arremedo fétido de banheiro. Estática, pensava sobre o que fazer para Vladimir deixar de visitá-la bêbado e bater nela e nas crianças, privando-a periodicamente da fátua felicidade que havia arduamente conquistado depois de anos de labuta. Mais acima, em um dos mais altos andares de um dos mais espetaculares edifícios da orla, Américo do Valle sorria esgarçadamente ao ser chupado por duas piranhas e um travesti enquanto seus outros colegas de festa enfiavam suas máquinas de aspirar em uma pequena montanha de pó sobre a mesa de vidro que, raramente, fazia as vezes de aparo de refeições.

Na frente do espelho, Marialda mirava-se sem emitir emoção, apenas com olhar vazio desde que chegara da rua de uma das baladas iguais às de sempre e sempre com os garotos e garotas da escola. Embora não tivesse bebido, coisa rara naqueles tempos, sentia-se confortavelmente entorpecida, o que lhe dava ainda mais propensão a avaliar friamente a questão que se assomava: cortaria os pulsos ou simplesmente aguardaria ali até que sua mente e seu corpo se esvaíssem como por encanto? Ferido após ser pego com seu pelotão em treinamento por uma tromba d´água que tudo arrastou pelo caminho no meio da floresta, o aspirante Adolfo, sozinho, gelado, só se ressentia de não ter levado seu chiclete de menta, que o faria por um momento esquecer da dor lacerante causada pelo toco de pau que havia atravessado sua coxa direita. Enquanto isso, tentava se locomover no escuro para não virar comida de mamíferos superiores e mosquitos inferiores, ao mesmo tempo em que sonhava com a Rosinha, um sanduba de pernil, uma cerveja gelada e um helicóptero de resgate, exatamente nessa ordem.

No meio-fio, Zé do Bode tentava, sem sucesso, resgatar do fundo de uma boca de lobo um isqueiro zippo novinho, perdido ao lado de uma lata cheinha de fluido, o que lhe daria ascendência natural sobre o nobre fogo e o salvaria, pelo menos naquela noite, do frio do cortante vento que insistia em fustigar seus ossos. Ao raiar do dia, Armando, o vigia noturno, acorda assustado de mais uma muito bem passada noite de sono. Vai até o banheiro da empresa, lava o rosto, faz um bochecho, dá uma alisada na farda amarrotada, pega sua bolsa, passa o cartão, ganha a rua e segue para o ponto de ônibus pensando no lauto café da manhã que vai fazer quando chegar em casa, que ninguém é de ferro nesta vida.

De volta

Aos meus dois leitores. Estou de volta. Se a alguém interessar possa. Deixei de postar por falta absoluta de inspiração. E também por causa da crise de saco cheio com tudo que me assola duas vezes por dia. Bom, é isso. Novos e emocionantes posts em breve (para quem não notou, estou tirando uma). Segue já já um novinho, escrito em uma segunda-feira à mão na mesa do Mustang Sally, em Curis, ao sabor de caipiras em duplicidade e uma cerveja.

That's it.