sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Baratópolis 1

A Vanda acha um horror as histórias de república de Bauru. Principalmente a parte das baratas. Mas elas eram legais, davam uma identidade inconfundível às nossas moradas. Na república da Joaquim da Silva Marta, a casa era de fundo. Entrava-se por um corredor detonado para, lá atrás, encontrar a casinha, mais acabada ainda.

A ligação de água era clandestina, daí a gente nunca ter pago nada em todo o tempo que moramos lá. A casa era velha, parecia feita de areia: se você fosse cutucando a parede, com o dedo mesmo, conseguia fazer um furo. O assoalho, de madeira, era daquele tipo que cede ao peso dos passantes.

Embaixo do assoalho... Bem, a crise de moradia para estudantes em Bauru era grande. Ninguém queria alugar pra esses baderneiros maconheiros. E as baratas também eram hostilizadas nessa região conservadora do desertão paulista. Daí precisarem de abrigo, carinho, proteção e muito alimento quase de graça. Ali, embaixo das madeiras sob nossos pés, elas viviam em paz.

Nossos móveis eram feitos de caixas de madeira roubadas da feira. Quando o dono da geladeira foi embora, eu e o Joca Terron fomos atrás de outra. Conseguimos uma pechincha por uma gelas quase sem fundo – tava todo carcomido pela ferrugem, com a lã de vidro pendurada como uma língua obscena. É claro que ela não durou muito. Ao quebrar, virou armário, e passamos anos sem geladeira. Quando precisávamos tomar uma coca gelada no almoço, íamos à casona ao lado, e pedíamos gelo, sob desconfiados olhares da vizinha. Para a cerveja, bastava ir até a padoca da esquina.

Nos memoráveis churrascos de final de semana, enchíamos a máquina de lavar tanquinho do Paulo com gelo e tascávamos as cervejas lá, normalmente depois de uma noite inteira gelando no freezer do Laurão, que tinha um bar mais abaixo e fazia os melhores espetinhos de frango empanados que eu já comi. No Laurão eu pude me deliciar uma noite assistindo ao Coringão ser campeão brasileiro, pela primeira vez, em cima do São Paulo na final em 1990. O melhor, ao lado do Joca e do Beto, dois são-paulinos mais chatos do planeta, se bem que são-paulino chato é pleonasmo pra lá de vicioso. Bons tempos nessa decepção futebolística atual em que nós, corintianos, nos metemos. Deixa pra lá.

Numa outra vez, um cabeçudo qualquer, acho que o próprio Beto, derrubou e quebrou a pia do banheiro. Não nos fizemos de rogados: não a reinstalamos por questões sentimentais, imagine quebrar toda uma desarmonia natural que ia se instalando com tanto requinte naquele muquifo? Ficamos sem pia até nos mudarmos de lá. Escovar os dentes era no banho ou na pia da cozinha mesmo.

Isso tudo é para ilustrar como o terreno era propício a todos os tipos de vermes rastejantes, como nós e as baratas. Ah, elas eram bastante ativas. À noite, ouvíamos as bichinhas roerem papéis. Teve um ano em que eu trabalhei pro IBGE fazendo o censo. Uma vez fui entregar um lote de questionários para meu supervisor, e alguns deles estavam até furados. “Acho que tem rato na sua casa”, disse ele. Mal sabia.

Tínhamos dois gatos, um preto, o Tai, e um branco, o Chin. Eles sumiram, assim como a Laura Palmer, outra gata que tivemos. Na verdade, nós abandonamos a Lauritcha lá, e, quando voltamos para procurar, ela tinha sumido. Os gatos nos davam presentes. Quando você acordava, lá estava uma barata meio comida olhando pra você, em cima do seu peito. Ah, que tempo bom, que alegria, quanto alto astral!

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4 comentários:

  1. Vixe!!! Pelo que vi, o lance vai além das baratas. Talvez com toda essa riqueza de detalhes, muitos irão me dar razão. Pensem: barulhinho de baratas roendo papel de madrugada, baratas ou metade delas de presente ao lado do travesseiro, documentos roídos, e os outros lances: escovar os dentes na pia da cozinha e, como todos zelavam pela casa, nem devia ter marca de pasta ressecada (de dias ou meses) nas bordas se misturando aos pratos e panelas. CARACA!!! E o cara ainda reclama da cachoeira dentro da nossa cozinha...

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  2. Pois é, pra você ver como a gente vai ficando exigente, né?

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  3. porra, monster, venho me esforçando arduamente na última década para esquecer de tudo isso e você vem me lembrar dessas coisas… bem, deixe-me assassinar mais alguns neurônios para ver se esqueço esse post.

    grandabrazo saudoso.
    joca

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  4. Joca, como disse por mail, deixar todo esse ótimo material crônico perdido no álcool?

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