quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Distração fatal

Um argumento cinematográfico baseado numa história que ouvi na infância


Interior/noite
TV ligada num jornal. Rosana, 35 anos, envolvida com afazeres na cozinha, ouve o apresentador falar sobre um determinado assunto e vem correndo para a sala. Seu marido está distraído, assistindo ao jornal, ela chega e aumenta o volume, toda interessada. O apresentador fala que o ano de 1970 vai entrar para a história de São Paulo porque é o primeiro ano das obras do metrô. Um repórter aparece fazendo a matéria mostrando as grandes máquinas trabalhando, dizendo que é preciso abrir caminho para a construção das estações e, por isso, vários prédios estão sendo desapropriados e implodidos. Imagens na TV mostram uma dessas implosões. Ele lembra que mais uma implosão está marcada para o dia seguinte. Rosana, que é bastante comunicativa e um tanto quanto ansiosa no modo de gesticular e agir, vai falando rapidamente para o marido que ela vai assistir a essa implosão, que todo mundo está falando sobre isso e que ela não pode perder, pois é um momento histórico para o país. Ele diz que dispensa esse tipo de programa, mas Rosana diz que não o estava convidando e que é para ele esquecê-la no dia seguinte e se virar com almoço e jantar. Diz que vai acordar de madrugada, se preparar e pegar o primeiro ônibus para chegar no local com antecedência e poder pegar um bom lugar para assistir, pois explica que nesses acontecimentos sempre há a maior aglomeração, como se fosse uma disputa de final de campeonato. Como que fazendo as contas de cabeça, fala que, para chegar a São Paulo, o ônibus leva uma hora, então é bom sair bem cedo para não pegar engarrafamento na marginal, na entrada da capital.

Interior/madrugada
O despertador toca insistente às quatro da manhã. Rosana abre os olhos ao primeiro toque, desliga-o e pula da cama. Toma um banho, coloca uma bela roupa de passeio e vai para a cozinha. Enquanto ouve o rádio, vai ajeitando, numa grande cesta de piquenique, um bolo, sanduíches, duas garrafas térmicas, pratinhos, garfos, uma toalha, copos de plástico e guardanapos. Ela pega sua bolsa, a cesta, coloca um chapéu e sai com seus passinhos curtos e apressados em seus sapatos de salto alto.

Interior/dia
Estação rodoviária. O ônibus de viagem chega lotado, inclusive com gente em pé. Rosana sai, se espremendo, e é uma batalha para conseguir pegar sua grande cesta do bagageiro externo do ônibus, com muita gente se acotovelando para pegar suas malas.  A movimentação na rodoviária é grande, com centenas de pessoas indo para lá e para cá, alguns arrastando enormes fardos, outros com carrinhos de bagagem lotados. Ela sobe enormes escadarias e desce outras tantas para conseguir sair da estação. Com um papel na mão, tenta se informar sobre qual ônibus urbano pegar para chegar ao seu destino. Ninguém sabe lhe dizer. Ela então volta a subir as escadarias para ir até um posto de informações na estação rodoviária, onde, depois de se acotovelar novamente entre diversos usuários, consegue sua informação.

Exterior/dia
Rosana torna a descer as escadas com sua cesta na mão e segue até um ponto de ônibus na rua, onde fica aguardando em uma enorme fila. Quando o ônibus chega, ela não consegue entrar porque já está lotado e tem que esperar o próximo. Finalmente consegue entrar em um, mas é aquela dificuldade lá dentro, pois o veículo também está cheio e ela sai esbarrando em todo mundo com sua cesta e sua bolsa a tiracolo.

Exterior/dia
Finalmente ela chega ao seu destino. Desce do ônibus, caminha um pouco e chega ao local da implosão. A rua à frente está isolada, e muita gente já está por ali para assistir. Ela encontra um canteiro numa praça próxima dali, em um nível um pouco mais alto, e se instala embaixo de uma árvore, aproveitando sua sombra. Arma seu piquenique: abre a toalha, senta-se e come seus quitutes. A aglomeração no local vai crescendo, mas ela está em uma posição privilegiada e consegue ver perfeitamente o prédio. Sirenes começam a tocar na construção, as pessoas começam a se posicionar. Rosana fica em pé, pega uma máquina fotográfica e se prepara para o grande momento. Ela puxa conversa com duas mulheres que estão ali perto, dizendo que veio de uma cidade vizinha só para isso, que é emocionante ver o progresso em andamento, que São Paulo é realmente a locomotiva do país. As desconhecidas concordam e dizem que as coisas na cidade estão uma loucura por conta dessas obras imensas do metrô, mas que é muito chique poder andar nele, como se faz na Europa. Todas riem. Rosana volta a olhar para o prédio e aguarda o momento crucial. Nisso, um senhor cocô de passarinho cai em seu ombro. De tão mole e melequento, ele escorre para sua blusa e suas calças. Ela pragueja contra o passarinho, olhando para cima. Vira-se, abaixa e fuça na cesta de piquenique. Pega um pano de prato, uma garrafa d´água, molha o pano e tenta se limpar. Faz o possível com o que tem à mão naquela hora. Ela ouve alguns ruídos e as pessoas batendo palmas e gritando. Guarda as coisas, levanta-se e, quando se vira com a câmera em punho, o que vê é apenas um monte e poeira se assentando e o prédio já no chão. As pessoas começam a deixar o local. Ela fica ali, sozinha, estática, ainda com a câmera na mão, tentando entender o que aconteceu, olhos vidrados, uma expressão desolada e engraçada no rosto. E então dá um profundo grito desesperado e cômico.

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