sexta-feira, 27 de março de 2009

O horror, piás, o horror! (final)

Fomos descendo cautelosamente os cinco degraus do pequeno lance de escadas. Virei para Sarita.
- Bom, e aí, o que fazemos agora?
Realmente não esperava aquela resposta:
- Sei lá. Por que você tá perguntando pra mim? Eu não tenho nem ideia.
- Como assim? Eu pensei que você soubesse o que fazer. Você não tá acostumada a fazer isso?
- Eu não. O Beto insistiu tanto, disse que não tinha quem fizesse, que tava todo mundo ocupado, que eu acabei aceitando.
- Cê quer dizer que nunca fez isso antes?
- Sim. Quer dizer, não.
Não era preciso entrar em pânico. Dois marmanjos deviam dar conta daquela turma de pequenos átilas, pensei eu.
- Bom, o Beto me falou de umas brincadeiras que a gente pode tentar fazer – ela disse.
- Então vamos.

Sem chance, quando nos notaram, as crianças vieram como uma onda. Nos cercaram, agarraram, gritaram. Só de zueira mesmo. Faixa média enre quatro e nove anos, os piores quando querem ser os piores. A gente berrava os diálogos inexistentes sem ninguém ouvir nada. Ainda bem, teria sido uma perda de precioso tempo ocioso termos feito algum tipo de ensaio antes. Tentávamos fazer esquetes, piadas, caretas, e nada, a balbúrdia era total e absoluta. Pelo menos estávamos cada minuto mais próximos da libertação daquela situação ridícula.

Mas tinha uma meia dúzia de agitadores-mirins ali que começaram a ficar entediados. E dá-lhe chute na canela, tapão na bunda, pisão no pé. Me virava pra dar bronca em um, outro vinha pela retaguarda. E, líderes natos que eram e alguns devem até estar já no congresso uma hora dessas, no fim toda a turma achou o verdadeiro significado da animação da festinha.

Sarita ia bem, os pequenos eram mais camaradas com ela, vejam só, cavalheirismo no meio da barbárie. Mas comigo, não, a coisa tava pesando. Um guri jogou dois espetinhos de frango dentro do meu calção largão. Já tava perdendo as estribeiras, esqueci toda a compostura que os bravos defensores dessa categoria profissional têm que ter e já tava berrando com as crianças. Um deles, um marrentinho que parecia ser o machinho alfa da matilha, me dava chutões nas canelas. Catei ele pelo braço e dei uma bronca. Ele saiu reclamando de boca torta. Fiquei todo orgulhoso, tinha conseguido desmoralizar o chefe do bando. Mas ele não tava vencido, muito pelo contrário.

O que deu pra perceber é que eles buscavam um troféu. Gritavam pela minha peruca, e eu dava banana pra eles. Era selvageria total. Dizem os iniciados que em determinadas situações de grande pressão, em que as trevas se avolumam, em que a noite escura da alma ameaça tolher toda e qualquer esperança para obscuros vãos abissais, o instinto aflora incólume sobre todas as forças, e o dito verniz civilizatório se esvai como que lavado por removedor da melhor qualidade, só restando o ser e a verdade frente a frente. Bom, cada um tem a verdade que merece. Naquele momento, o que restava era um grupo tentando devorar um grande paquiderme que, se vangloriando de seu tamanho e privilegiado cérebro, achava que poderia vencer a parada.

Alguns moleques descobriram a mina de ouro. Um deles se pendurou em minhas calçonas e puxou até meus pés. Pateta total, eu tinha ido sem um calção por baixo, estava só de cueca. Quando a turma ficou sabendo disso, foi um gol pra galera, a cada segundo um deles se pendurava na calça e soltava, os suspensórios de eslástico quase não aguentando a parada. Aquilo era demais, eu estava perdido, descontrole total.

Joguei a toalha. Resolvi sair daquele antro, mas estava tão acuado que era difícil até me movimentar. Mas aquele não era a zerada da noite ainda. Com neurônios novinhos em folha, aquela ganguezinha tinha realmente um modus operandi. E caí no truque mais velho do mundo. Um deles ficou de quatro atrás de mim, e uns cinco vieram com tudo me empurrando. Lá fui eu na única e memorável cena verdadeiramente palhacesca da noite: capotei com pernas pro ar na cama de gato armada pelos fedelhos, de pés pra cima, costas no chão, quase dando uma cambalhota ao contrário. E, plano cuidadosamente armado, o objetivo final alcançado, o pirralho liderzinho, ágil que nem o capeta, veio e arrancou minha inglória peruca de palhaço.

Ainda zonzo, desmascarado, ou despalhaçado, sem moral nenhuma, sem um pingo ou vapor de dignidade, sem o escudo – frágil, mas ainda um escudo – de proteção do personagem, saí atrás daquela massa de moleques, que nessa hora já haviam estraçalhado a peruca. Peguei um resto dela da mão de um, tentei colocar na cabeça e fui ter com a Sarita. Ao me ver, ela rachou de rir. Mas se compadeceu. Suspensórios largos, a cueca aparecendo, a maquiagem toda borrada, parecendo mais o coringa, um resto da peruca estraçalhada presa na cabeça, era a imagem feita de um pobre diabo. Ela me pegou pelo braço e me levou dali daquele quintal. Entramos, subimos as escadas e fiquei um tempo ainda sentado na privada, refletindo sobre tudo aquilo. Me limpei como pude, retirei os trapos, e descemos.

Pegamos os caraminguás com a dona da festa, que não fazia nem ideia e nem queria saber do que tinha acontecido lá nos fundos da casa. Querem um refrigerante? Um salgadinho? Não, dona, por favor, só a porta da rua. Saímos. Ar fresco da noite. Prometi nunca mais fazer aquilo. Era nisso que eu tava pensando agora, como foi tudo aquilo. E de repente me caiu a ficha de novo. Que diabos eu tô fazendo aqui com um colante azul, com a rosto e as mãos pintadas de azul, um chapéu esquisito e a cara do Papai Smurf?

  • Este texto foi inspirado por um post hilário do Jorge aqui. Vale a pena conferir.

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