sábado, 17 de abril de 2010

O universo em um pedaço de marguerita mastigado

Não tenho nada na cabeça mesmo. Não neste instante. Nem em outros precedentes. Engraçado, né? Porque se eu estou pensando nisso agora é porque, no fim, tenho alguma coisa na cabeça. Mas não é a isso que me refiro. Esqueço rostos e nomes. Que vergonha. Tenho que fazer uma listinha e discretamente olhar enquanto cumprimento os convivas da festinha de seis anos de meu filho. Cobradores tentam ligar em meu celular, mas nem a caixa postal lhes dá uma informação que preste. Lentamente, vou seguindo a lâmina de barbear pelo meu rosto sem me tocar que a barba já se foi ralo abaixo há pelo menos quarenta minutos e trinta e três...trinta e quatro...trinta e cinco segundos. Meu último relógio parou no horário de verão de 2001 e nunca mais voltou. Embora tenha capacidade para aguentar uma coluna de água de 200 metros sem se espatifar, dorme silencioso na profundidade de dez centímetros da gaveta de meu criado-mudo. Na cabeceira, agora me lembro, abundam diversos ecos de algo que um dia achei que fosse cultura: HQs, histórias de heróis da navegação antiga, ultracosmologia aplicada, mitologia grega, ficção científica e o jornal de anteontem, pessimamente editado e escrotamente posicionado. Me lembro que faz algum tempo que não compartilho esta cama, ou qualquer outra, e fluidos corporais com ninguém. A saudade de alguém que não existe começa a bater de novo. Mas me lembro que da última vez acabou, pra variar, com um basta! Chega de lamúrias, mulher! Pra que se arriscar a me fazer feliz se há tanta satisfação na incompreensão alheia? Mas deixa estar. Deixa mesmo. Sem sentido, sem tato, sem visão, sem uma companhia que preste, mesmo sabendo que abundam todas as taras na rede. Adoro rede, sim, agora lembro. No Ceará, certa vez, aprendi a dormir numa até de bruços, até roncar. Me arrisco a dizer que se lá morasse não teria dificuldade em fazer uma prole sem nunca ter que colocar de novo os pés nesse mundo cruel. Mas o diabo é que sempre que estico a rede ou faz um sol da porra que esturrica a pele ou chove e venta até cair árvore. Então não estico a dita e garanto o tempo no meio-termo ameno. Quem disse isso? Não, eu não falei menas. Nunca falei menas e nunca falarei menas. Se alguém aqui quiser falar menas que vá pra uma rede menas lotada. Detesto quem fala menas. Isso me deixa fora de si... Bobagens. Insidiosas bobagens cretinas, céticas e cínicas. Três Cs. Cutelo, curitibano e culatra. Três... Ah, o pastel já encheu de ar, está rescendendo o cheiro de queijo e gordura e deixando a boca cheia dágua como só um pastel de feira pode fazer. Peço uma coca pra rebater a ressaca, que já tá indo embora, pois estou chegando da noitada e a feira está apenas começando. Durmo, esqueço. Já esqueci. Outra hora eu lembro. O telefone toca insistente. As pessoas deveriam ter vergonha de usar esses aparelhos infernais. Atendo. Sou eu mesmo. Meu alter ego, que ficou estendido no quintal, não o deixei entrar em casa. E agora ele está puto. Diz que vai quebrar tudo. Que minha branca de neve, os anões e todos os malditos sapos em poses duvidosas em cima de cogumelos de meu jardim irão pagar o pato se eu não liberar pra ele. Isso não. Não quero que ele volte, com sua arrogância e sua depravação que já me custaram alguns dentes da boca e uma centena de zeradas sociais. Mas isso não, ele fez meus queridos enfeites reféns. Ofereço o pinguim da geladeira, mas, segundo ele, não é suficiente. Ofereço um plus: meu papai noel na cadeira de praia, então. Muito pouco, fala ele em uma voz rouca e ameaçadora. Consigo apenas um anão. Eu queria o Dunga, mas ele só me dá aquele idiotinha do Dengoso, meio viadinho. Mas é melhor do que nada. Suspendo as negociações para até depois do almoço. Vou almoçar pizza amanhecida. Ou seria entardecida? Ah, antigas emoções não morrem jamais. Odores nos captam para memórias envelhecidas, mas prementes. Fazem parar o tempo, esse é o potencial quântico da mente de que tanto falam. Inspiro, expiro. Ah! Caio em uma crise de tosse que quase me faz cuspir um pedaço de pulmão. Me assusto quando voa uma pasta avermelhada de minha boca, mas por sorte é apenas um pedaço de marguerita semidigerido. Olho aquele troço no chão e percebo que tenho o dom da clarividência. Alguns leem búzios, outros o voo dos pássaros. Uns leem a mão, a íris, o cotovelo e o vão entre as orelhas. Mas eu descubro que posso ler restos de comida mastigada. E nela eu vejo. E assim compreendo. O futuro, vejo à minha frente, serpenteando, cada minúsculo espaço de tempo possível fazendo um desenho espiral na vastidão do cosmos. Sim, eu deveria estar ali, mas na verdade estou aqui, vendo que se eu estivesse ali eu não teria que passar a raiva de ter que atender novamente ao meu estridente telefone, bem feito por querer ser moderno e gastar os tubos num telefone retrô com aquelas campainhas penduradas no lado. Alô, sinto muito, mas não estou no momento. Na hora do piiii! deixe algum recado que eu piiii! O sujeito do outro lado me manda tomar no piii!, será que é algum amigo? Vai saber, quando começa a elogiar assim, é melhor desconfiar. Não importa. Já me distraí novamente e aqui estou pensando em como vou escapar desta vespa gigante que entrou se debatendo pela janela. Ela voa pra lá e pra cá e eu, horrorizado pelo seu tamanho. Certa vez, estava numa ilha semideserta – e na verdade, era uma semi-ilha –, e eu vi vespas gigantes, do tamanho de uma mão. Elas se escondiam em buracos no chão que mais pareciam tocas de cobra. Devem ter comido as cobras pra morar nos buracos. Isso se passava enquanto eu me hiptnotizava pelos devolteios da vespinha lá de casa. Não, não, ela veio pra cima de mim, e agora? Saio correndo pelo corredor. Aha! Ficou pra trás. Não! Ela veio no meu vácuo, meu desespero aumenta. Quanto mais eu corro, mais ela encosta. E agora, o que faço? Corro mais, e ela no meu cangote. Entro correndo no quarto, me jogo na cama, ela passa zunindo por cima de mim e sai pela janela aberta. Rolo de barriga pra cima e me dou conta, sou mesmo um nada, um encostado, não faço as mínimas tarefas, lembro de que tem uma coisa que há anos venho prometendo fazer e que não fiz. Aquele descascado ali no teto, eu tinha dito que iria acabar com ele, e lá está, belo e formoso, me olhando, crescendo, biteludo, sendo tomado inclusive por lindas sardas pretinhas, fruto de um emboloramento que vem tomando também a parede, descendo como uma doença contagiosa. Bem, chega. Chega de enrolar. Agora preciso tomar uma atitude. Preciso trabalhar. Sentar no computador e ser um pouco produtivo. Dar minha contribuição para que o mundo progrida. Navegar e… olha esta gostosa aqui. Pronto, já me desviei, preciso de uma punheta urgente, mas meu pau tá ralado das últimas dez que bati ontem. Deixa quieto. Voltando à vaca fria, preciso me concentrar, pensar, criar, relatar. Preciso! Porra! Dormi na mesa. Minha testa está com um vergão de fora a fora, marcada pela borda do teclado. Boa ideia, esta seria uma bela foto para a orelha de minha grande obra. Tá certo que não tem um título ainda. Nem um enredo. Ou uma pesquisa. Nem mesmo um rascunho. Na verdade não tem nem um tema e nem ao menos uma única linha escrita. Está na minha cabeça. Ou em algum lugar, pois se não está aqui, tem que estar em algum outro lugar, não? Afinal, o que não existe tem que existir em algum canto, senão como vai se manifestar em alguma mente? Bem, então está aí. Esse grande nada é minha genial criação. Esse vasto não falar. Um imenso lugar cheio de vazio. Deixa estar. Nada como um dia depois de um dia perdido. Nisso, sou mestre. O artista da desonra. O paladino da falta de nexo. O rei da zerada. Mais uma noite cai. Que tombo. Bom, deixa pra lá. O que tem pra comer? Pão de três dias e feijão gelado, pois acabou o gás. Fazer o quê? Sanduíche de pobre e cama.

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